A marca avermelhada no rosto de uma menina de apenas seis anos, provocada por uma chinelada do próprio pai, chamou a atenção dos professores e revelou mais um caso de violência contra crianças no Estado.
O episódio aconteceu na última quarta-feira (6), em Taquarana, no interior de Alagoas, e levou à prisão do suspeito, mantida pela Justiça nesta sexta-feira (8). Assustada, a criança contou que a agressão ocorreu enquanto ela chorava à procura de um anel perdido.
Apesar de histórias como essa gerarem indignação, os números mostram que a violência — física ou verbal — ainda é parte da rotina de muitas famílias brasileiras.
Segundo a pesquisa “Panorama da Primeira Infância: o que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros seis anos de vida”, lançado no último dia 4 de agosto, reconhecido oficialmente como o Mês da Primeira Infância, por conta da Lei n° 14.617 de julho de 2023, 29% dos responsáveis por crianças de 0 a 6 anos admitem usar palmadas, beliscões ou apertos como forma de disciplina, e mais de 40% dizem gritar ou brigar com os pequenos.
A contradição é evidente: apenas 17% acreditam que a violência física funcione, mas quase um terço ainda a pratica. Especialistas alertam que essas agressões deixam marcas que vão muito além do corpo — como baixa autoestima, dificuldade de socialização, comportamentos agressivos e ansiedade — e comprometem o desenvolvimento emocional e psicológico ao longo da vida.
Diante desse cenário, o Ministério Público do Estado de Alagoas (MPAL) tem atuado de forma integrada com a rede de proteção para prevenir e enfrentar a violência contra crianças pequenas. Segundo o promotor Gustavo Arns, coordenador do Núcleo de Defesa da Infância e Juventude, uma das principais iniciativas nesse sentido é o projeto “Aprender a Proteger”.

A proposta utiliza um aplicativo interativo para capacitar profissionais da saúde, educação, assistência social e demais integrantes do Sistema de Garantia de Direitos. O objetivo é fortalecer a identificação precoce de sinais de violência, aprimorar a escuta qualificada das vítimas e garantir um acolhimento sensível e eficaz.
Além disso, o MPAL acompanha a implementação de políticas públicas voltadas à proteção da criança, expede recomendações administrativas, investiga denúncias de violação de direitos e, quando necessário, ajuíza ações judiciais.
Para o promotor Gustavo Arns, o uso da violência na criação de crianças pequenas está enraizado em uma visão adultocêntrica, em que o adulto ocupa uma posição de autoridade incontestável. “A cultura da violência como método educativo é historicamente enraizada. Muitos ainda vêem o castigo físico como uma forma de cuidado ou formação moral”, explicou.
Apesar das leis e do maior acesso à informação, a mudança cultural é lenta e requer intervenções educativas contínuas, campanhas de conscientização e fortalecimento da rede de proteção institucional.
Em Alagoas, ainda não há um canal exclusivo para denúncias de violência contra crianças na primeira infância. Os casos são encaminhados por meios institucionais regulares, como o Disque 100, os Conselhos Tutelares, as Delegacias de Polícia, o próprio Ministério Público e os demais órgãos da rede de proteção.
A partir da denúncia, o caso pode ser investigado e encaminhado para medidas de proteção à criança (conforme o artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), responsabilização administrativa dos responsáveis e, em situações graves, processos civis e criminais.
As implicações legais incluem medidas protetivas, afastamento do agressor do convívio familiar e, em casos reiterados, até a destituição do poder familiar. Penalmente, o responsável pode responder por maus-tratos, lesão corporal ou até tortura, a depender da gravidade.
Cultura autoritária
Para o psicólogo João Henrique Correia Ferreira, especialista em Desenvolvimento Infantil, no Brasil, ainda existe uma cultura que acredita que bater educa. “Muitas pessoas repetem o que viveram na própria infância, achando normal usar a violência para ensinar. Mesmo com a lei proibindo, falta informação e apoio para que as famílias aprendam formas mais positivas de educar”, pontuou.
Segundo ele, estudos em psicologia do desenvolvimento mostram que esses métodos geram efeitos emocionais negativos e duradouros, mesmo quando não configuram maus-tratos graves.
De acordo com o especialista, entre os impactos mais comuns estão o aumento da ansiedade, medo e insegurança emocional; baixa autoestima e dificuldades na construção da autoconfiança; conceito de que a violência é uma forma legítima de resolver conflitos; problemas de comportamento e maior propensão à agressividade; e dificuldades no vínculo com figuras de autoridade.

Além disso, João Henrique reforça que a neurociência e a epigenética têm demonstrado que ambientes hostis e punitivos na infância podem afetar o desenvolvimento cerebral, especialmente das áreas ligadas à regulação emocional e ao autocontrole.
“Essa crença está enraizada em uma cultura autoritária onde respeito é confundido com submissão e obediência com controle do comportamento pelo medo. Muitas pessoas repetem esse modelo por falta de referências de educação positiva, além de dificuldades em lidar com frustração, limites e emoções, tanto das crianças quanto das suas próprias”, analisou o especialista.
Ele reforça que, para desconstruir essa ideia, são necessárias ações como:
Para profissionais da saúde mental:
• Promover psicoeducação para famílias sobre desenvolvimento infantil e parentalidade não violenta.
• Trabalhar com grupos reflexivos e terapêuticos sobre os padrões herdados e seus impactos emocionais.
• Integrar práticas de educação emocional nos atendimentos com pais e cuidadores.
Para educadores:
• Oferecer formações contínuas sobre educação socioemocional, neurodesenvolvimento e manejo de comportamentos difíceis.
• Criar espaços escolares acolhedores que valorizem o brincar, o diálogo e a escuta da criança.
• Mediar conflitos de forma respeitosa, sendo exemplo de autoridade sem autoritarismo.
Para a sociedade:
• Investir em campanhas públicas de sensibilização, como as que o UNICEF e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal promovem.
• Valorizar programas como o Primeira Infância Melhor (PIM) e o Criança Feliz, que apoiam o cuidado e o desenvolvimento na primeira infância.
• Estimular a presença paterna ativa e compartilhada na criação dos filhos, desfazendo a ideia de que educar é “coisa de mãe”.
Campanhas de conscientização e desafios
Para o promotor Gustavo Arns, as campanhas de conscientização têm gerado avanços importantes, especialmente ao informar a população sobre os direitos das crianças e os danos provocados pela violência nos primeiros anos de vida.
No entanto, ele reconhece que os resultados ainda são limitados, principalmente em comunidades em situação de vulnerabilidade, onde predominam a baixa escolaridade, a ausência de políticas públicas efetivas e valores autoritários profundamente enraizados.
“É preciso investir mais em formação continuada de profissionais, no monitoramento das campanhas, em intervenções precoces e na educação familiar e comunitária. Só assim será possível consolidar uma infância verdadeiramente protegida, onde o cuidado substitua o medo e o afeto ocupe o lugar da violência”, concluiu Arns.
Práticas transgeracionais
A psicóloga Natasha Taques revela que padrões transgeracionais de criação são transmitidos como verdades absolutas de uma geração para outra. Muitos cuidadores repetem aquilo que viveram na própria infância, acreditando que “se deu certo comigo, dará certo com meus filhos”.
“Essas práticas rígidas e punitivas podem ser modos aprendidos para lidar com emoções, especialmente quando os cuidadores não tiveram modelos de acolhimento e correção respeitosa. Mesmo com leis, o hábito emocionalmente enraizado leva tempo para mudar, porque ele não se sustenta apenas na informação, mas em crenças profundas sobre autoridade, obediência e valor pessoal”, pontuou.
Taques ainda acrescenta que mudar essa realidade exige consciência, autorreflexão e apoio para que cuidadores consigam romper com padrões que já não servem ao desenvolvimento saudável.

A primeira infância é uma fase em que o cérebro está em intensa construção. Desta forma, palmadas, gritos e beliscões não ensinam autocontrole, mas sim medo e evitação. O impacto mais profundo é na formação dos esquemas iniciais desadaptativos: a criança pode desenvolver crenças de desvalor, desconfiança, abandono ou submissão, que moldam suas relações futuras.
“A exposição constante a estresse e ameaça ativa repetidamente o sistema de alerta do corpo, aumentando a produção de cortisol, o que pode prejudicar o desenvolvimento cognitivo, a memória e a regulação emocional. Em vez de aprender a pensar antes de agir, a criança aprende a esconder sentimentos e necessidades, e isso é o oposto da educação emocional”, alertou a psicóloga.
Natasha também afirmou que esse tipo de comportamento mostra uma visão centrada nas necessidades do adulto, o qual o valor da criança está mais ligado ao quanto ela se adapta e obedece às expectativas dos adultos do que ao seu próprio desenvolvimento integral.
“Quando priorizamos o respeito cego à hierarquia, podemos negligenciar o cultivo da curiosidade, da criatividade e do pensamento crítico. O problema não é ensinar respeito, mas entender que respeito é uma via de mão dupla, e começa pelo respeito do adulto à criança”, pondera, defendendo que cuidar da criança de hoje é também curar o adulto de amanhã.
*Estagiário sob supervisão da editoria