A adultização é um fenômeno pelo qual crianças e adolescentes são expostos, ou incentivados, a comportamentos e experiências típicas do universo adulto- sem possuírem a maturidade física, emocional ou cognitiva necessária para lidar com tais vivências.
No Brasil, a adultização também se manifesta em vieses como a sexualização precoce e desigualdade racial estrutural. O assunto virou discussão nas redes sociais e no Congresso Nacional nos últimos dias, após o youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, divulgar um vídeo abordando o tema e denunciar o influenciador Hytalo Santos de exploração sexual de menores de idade em conteúdo na internet.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, a infância vem sendo adulterada pela lógica capitalista: as crianças se vestem como adultos, usam roupas sensuais, maquiagem, acessórios eróticos e apresentam comportamentos exibicionistas, muitas vezes incentivados pelo marketing e pelas redes sociais. Crianças ultrapassam as barreiras estéticas e têm uma alteração do que elas, quanto crianças, devem ter de si e do mundo, o que gera consequências emocionais, cognitivas e sociais, prejudicando seu desenvolvimento e comprometendo seu bem-estar.
Em muitos casos, a adultização de crianças também é incentivada pelos próprios pais, com o intuito de gerar lucro, nas redes sociais, que incentivam que as pessoas exponham as próprias vidas. Outro risco sério da adultização infantil, com exposição nas redes sociais, é que imagens e vídeos que exibem crianças podem ser usados por criminosos, como, por exemplo, pedófilos.
O que diz a lei
Embora a “adultização” não seja tipificada como crime, o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de mecanismos legais para proteger crianças contra condutas que violem sua dignidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) respalda a proteção da infância, expressa pela “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.
O artigo 241-D da Constituição tipifica como crime “aliciar, assediar, instigar ou constranger [...] criança, com fim de com ela praticar ato libidinoso”, com pena de reclusão de 1 a 3 anos e aplicação de multa.
Há, em tramitação, iniciativas legislativas para ampliar essa proteção. Uma delas é o projeto de lei, PL 3.852/2025, apelidado de “Lei Felca”, que criminaliza a sexualização digital infantil, a monetização de conteúdo infantil e impõe obrigações às plataformas digitais.
Além disso, o combate à pornografia, exploração e aliciamento digital de menores tem sido reforçado por meio de multa, pena privativa de liberdade e outros instrumentos legais.
A advogada Ana Nascimento explica que a adultização é um fenômeno recente, impulsionado pelo aumento da exposição infantil online e pela transformação digital. “Crianças e adolescentes passaram a reproduzir atos e comportamentos típicos de adultos, abandonando práticas da infância, como brincar”, completa.
De acordo com Ana Nascimento, a adultização veio com a transformação digital e, por isso, não está prevista em lei. No entanto, a advogada alerta que a Justiça já está revendo o tema, incluído nele o trabalho infantil, pois muitas crianças e adolescentes usam as redes socais para ganhar dinheiro, seja incentivado pelos pais ou não.

No Brasil, o trabalho infantil é proibido, exceto como participação artística mediante autorização judicial. No caso do influenciador Hytalo Santos, a advogada explica que ele vai responder seguindo o devido processo legal.
Hytalo e seu marido, Israel Nata Vicente, foram presos nesta sexta-feira (15) em Carapicuíba, na Grande São Paulo, em cumprimento a mandados expedidos pela 2ª Vara da Comarca de Bayeux, na Paraíba. Segundo o MPPB (Ministério Público da Paraíba), as investigações têm por objeto os crimes de tráfico humano e exploração sexual infantil.
A advogada alerta que até uma publicação inofensiva pode colocar crianças em situação de vulnerabilidade online. As imagens compartilhadas podem ser usadas de forma indevida. “Imagens que parecem inocentes para os pais, pode parecer atrativa para um pedófilo, por isso, é fundamental proteger a imagem de crianças e adolescentes”, frisou.
Desenvolvimento infantil sob o cerco: o papel da escola na preservação da infância
A pedagoga Nayara Stheffany diz que uma criança exposta de forma contínua a comportamentos, responsabilidade e conteúdos que não correspondem à sua faixa etária pode ter prejuízos nas suas relações sociais entre outros impactos emocionais.
“A criança pode se distanciar dos colegas de mesma idade, ter dificuldade em interagir de forma lúdica, apresentar dificuldades de aprendizagem, reduzindo a concentração e o interesse pelo conteúdo escolar. Além dos impactos emocionais como aumento de ansiedade, estresse e insegurança, pois a criança assume papéis que não consegue sustentar”, explica a pedagoga.

A profissional aponta alguns sinais que podem indicar que uma criança está sendo adultizada. São assuntos, problemas e comportamentos que não cabem a uma criança.
“O uso de linguagem e expressões adultas incomuns para a idade; interesse excessivo por assuntos do mundo adulto (relacionamentos amorosos, problemas financeiros, vida sexual); posturas de responsabilidade exagerada, como cuidar constantemente de irmãos ou “resolver” problemas dos colegas; e repetição de comportamentos e preocupações de adultos, como falar sobre trabalho, contas, ganhar dinheiro e preocupação exagerada com o corpo”, lista a pedagoga.
Sobre o papel da escola e dos educadores na prevenção e combate à adultização infantil, Nayara afirma que cabe à escola acolher e absorver, criando um ambiente seguro para que a criança possa se expressar e revelar o que sente. Ela aponta ainda que a escola pode trabalhar temas de forma lúdica, quando se trata de assuntos sérios e os educadores devem usar linguagem e atividades apropriadas à faixa etária. “A escola também deve envolver a família, alertar e orientar os pais sobre a importância de se preservar a infância, oferecendo alternativas saudáveis de convivência e lazer. A escola pode promover campanhas e projetos escolares sobre o direito à infância”, acrescentou.
Para a pedagoga, atividades lúdicas podem ajudar a resgatar o tempo e vivência da infância. Tanto a escola como as famílias podem adotar brincadeiras cooperativas e que estimulem a interação social saudável, encenações e contações de histórias, atividades artísticas, brincadeiras de faz de conta, são atividades que fazem as crianças serem crianças, além de deixá-las distantes das telas.
“A escola pode ser um refúgio onde a criança tem direito a viver sua infância de forma plena, compensando o excesso de exigências do mundo externo”, conclui a pedagoga.
Impactos emocionais da adultização
“Cada etapa da infância tem seu tempo e suas necessidades. Quando a criança é exposta precocemente a exigências adultas, perde-se a espontaneidade, o brincar e a construção da identidade”, alerta a psicóloga Madelene Limeira.
Segundo a psicóloga, do ponto de vista neurológico, o adiantamento provocado pela adultização pode gerar estresse tóxico, afetando áreas do cérebro ligadas à autorregulação e ao controle emocional. “O resultado são sintomas como ansiedade, irritabilidade e fadiga, além de dificuldades emocionais a longo prazo”, explica.
Madelene alerta que as redes sociais também influenciam muito esse processo. Com acesso irrestrito a conteúdos adultos, crianças passam a imitar comportamentos para os quais não estão preparadas. “O senso crítico e os valores ainda estão em formação. As redes acabam ocupando o espaço dos pais na construção moral da criança”, afirma
A profissional adverte que a adultização não se limita à sexualização precoce, mas também aparece em situações como a ausência do brincar, preocupações com problemas adultos e responsabilidades familiares.

“No ambiente familiar, é fundamental garantir o brincar, o contato com a natureza e a liberdade de ser criança, sem pressão por produtividade. Já no campo social, políticas públicas devem assegurar acesso igualitário à cultura, lazer e segurança”, defende.
Já no campo das redes sociais, a profissional diz que o acesso demasiado e ilimitado a conteúdos de comportamentos adultos antecipa representações e padrões aos quais as crianças não possuem recursos emocionais para o ajustamento saudável e gera imitação de tais padrões sem quaisquer filtros críticos, uma vez que o julgamento e a moral ainda estão em formação na infância. “Nesse contexto, as redes podem disputar o lugar dos pais e/ou responsáveis na construção do superego da criança, ou seja, dos valores morais”.
A psicóloga lembra que, em contextos de vulnerabilidade, muitas crianças são forçadas a assumir papéis de adultos desde cedo, o que agrava ainda mais o problema. “A adultização é também uma questão estrutural e cultural, que precisa ser enfrentada coletivamente.”
E conclui com uma reflexão sobre o que significa ser criança no mundo contemporâneo, onde ser criança não garante que viver uma infância de verdade. “Ser criança não significa ter infância, desse modo, é responsabilidade coletiva e social a garantia dos direitos plenos das crianças e adolescentes”, pontua a psicóloga.
*Foto capa: Freepik