Na casa do barbeiro Alex Leite, 28 anos, as rachaduras nas paredes refletem não apenas o desgaste do tempo, mas o avanço silencioso da destruição no bairro do Bom Parto, em Maceió. Herdado do pai, o imóvel que antes simbolizava afeto e segurança hoje representa instabilidade e medo. “Não sei se vou poder reformar. Fico preso entre a lembrança e o risco”, desabafa.
Além do medo constante de desabamento, Alex convive com o abandono dos serviços públicos. “Falta policiamento, o saneamento é péssimo, a água some toda tarde e a energia oscila o tempo todo. A água da torneira ainda tem um gosto salgado insuportável”, relata.
Barbeiro há nove anos, Alex viu a clientela desaparecer. A barbearia, que antes reunia filas de até 20 pessoas, hoje amanhece em silêncio e solidão. “A Braskem destruiu minha profissão, acabou com meu sonho. Minha vida virou um caos”, lamenta.
Foi justamente nesse cenário de ruína que o juiz federal André Granja realizou, na última terça-feira (22), uma inspeção judicial em imóveis localizados na área de monitoramento 01 do Mapa de Linhas de Ações Prioritárias, no Bom Parto. A visita, solicitada pela Defensoria Pública da União (DPU).
A inspeção integra uma ação que cobra a ampliação do mapa de risco e a realocação imediata dos moradores das regiões afetadas pelo afundamento do solo, provocado por décadas de extração de sal-gema pela Braskem. O desastre atingiu cinco bairros da capital alagoana — Pinheiro, Mutange, Bebedouro, Bom Parto e parte do Farol —, transformou áreas inteiras em zonas inabitáveis e forçou o deslocamento de mais de 60 mil pessoas.
Agora, em meio à crise ainda em curso, um novo sinal de alerta preocupa ambientalistas e especialistas. A recente aprovação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 2.159/2021 — apelidado de “PL da Devastação” — ameaça flexibilizar as regras do licenciamento ambiental.
Para os críticos da proposta, ao reduzir os mecanismos de controle e proteção, o projeto abre brechas perigosas que podem permitir que tragédias como a de Maceió se repitam em outras regiões do Estado.
Licenciamento ambiental sob ameaça
O projeto propõe a flexibilização de regras de licenciamento ambiental para empreendimentos considerados “estratégicos” para o desenvolvimento econômico — categoria que pode incluir desde obras de infraestrutura até projetos de mineração.
Para o arquiteto e urbanista Dilson Ferreira, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a proposta representa um grave retrocesso. “Ela permite que o empreendedor se autodeclare em conformidade com a lei, sem qualquer estudo técnico prévio. Ou seja, o sujeito pode construir em cima do mangue e afirmar, por conta própria, que não vai causar impacto ambiental”, critica.
O projeto cria dois novos tipos de licença: a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que concede autorização automaticamente a partir de uma autodeclaração; e a Licença Ambiental Especial (LAE), destinada a empreendimentos estratégicos, com tramitação acelerada e menos exigências.
Segundo Ferreira, essas mudanças desmontam pilares fundamentais da política ambiental brasileira: “prevenção, cautela e participação social”. Para ele, a proposta representa um enfraquecimento deliberado das salvaguardas que garantem a análise técnica e o controle sobre os impactos ambientais.
O arquiteto alerta que, ao transferir a responsabilidade das decisões ambientais para os próprios empreendedores, o projeto esvazia o poder de fiscalização de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL) e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB). “É um retrocesso de pelo menos 50 anos na legislação. Esses órgãos perdem a capacidade de barrar empreendimentos poluidores”, afirma.

Alagoas sob risco ampliado
Segundo Ferreira, em um estado que já testemunhou a destruição de bairros inteiros por negligência ambiental, os efeitos do PL podem ser ainda mais graves. O docente destaca a fragilidade institucional local, marcada pela interferência política no IMA e pelo desmonte do órgão municipal responsável pela fiscalização ambiental na capital. “Essa perda de autonomia técnica compromete seriamente o controle e a fiscalização”, alerta.
A extinção da SEMURB foi determinada pela Prefeitura de Maceió por meio da Lei Delegada nº 012/2025. A nova legislação redistribui suas atribuições entre dois órgãos: o IPLAN, subordinado ao Gabinete Civil, e a Autarquia Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (AMS), vinculada à Secretaria de Infraestrutura.
Ainda de acordo com o especialista, populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas também podem ser impactadas diretamente pelas mudanças previstas no projeto. A proposta ameaça direitos fundamentais dessas comunidades, que já enfrentam dificuldades históricas na regularização de seus territórios.
Ferreira destaca que o PL ignora o direito à consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao excluir da análise comunidades cujas terras ainda não foram oficialmente demarcadas. “É inconstitucional e fere acordos internacionais”, enfatiza.
A ameaça se estende ainda à Mata Atlântica. O projeto dispensa autorização federal para desmatamento em áreas regeneradas, o que pode agravar a destruição de um bioma já reduzido a fragmentos em Alagoas. “Num estado que perdeu quase todo seu bioma original, isso pode ser devastador”, diz Ferreira.
O impacto da desregulamentação ambiental
A preocupação com o enfraquecimento das regras ambientais é compartilhada por membros do Ministério Público do Estado de Alagoas (MP/AL). O promotor Kleber Valadares, classifica o PL 2.159/2021 como um retrocesso perigoso. “O caso da Braskem mostrou as consequências trágicas da falha nos mecanismos de controle. O projeto reduz a exigência de estudos técnicos e dificulta a responsabilização por danos”, adverte.
A Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA), da qual o promotor faz parte, já publicou nota técnica alertando que o PL abre brechas para retrocessos.

Entre os pontos mais criticados por Kleber Valadares está a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que elimina a necessidade de análise técnica prévia e ainda permite a renovação automática das licenças.
A ABRAMPA também denuncia que o projeto apaga os impactos sobre povos tradicionais, ao restringir a avaliação apenas a territórios já titulados, desconsiderando comunidades em processo de reconhecimento ou com formas de ocupação tradicionais.
No Litoral Norte de Maceió, por exemplo, onde manguezais e comunidades tradicionais convivem com a pressão da especulação imobiliária, o projeto pode abrir caminho para novos empreendimentos sem a devida fiscalização.
Em fevereiro, o Ministério Público recomendou a suspensão de licenças para a construção de espigões próximos aos mangues, alertando para os riscos de danos irreversíveis.
“A revogação de dispositivos que exigem Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) pode fragilizar o controle sobre empreendimentos de alto impacto”, reforça Kleber Valadares. “Isso dificulta a defesa do patrimônio natural e das comunidades que dependem dele.”
Enquanto o PL avança, moradores seguem entre medo e incerteza
Para Dilson Ferreira, o projeto de lei não representa uma modernização do licenciamento ambiental, mas sim um retrocesso que desmonta mecanismos essenciais de controle e proteção. “Toda a sociedade pode pagar um preço alto por isso: enchentes, contaminação, desmatamento, colapsos e insegurança hídrica”, alerta.
O especialista reconhece a necessidade de um licenciamento mais ágil, mas ressalta que isso não pode ser feito às custas da ciência, da transparência e da responsabilidade com as futuras gerações. “Defendo o veto total a esse projeto”, pontua.
Enquanto o debate sobre o chamado “PL da Devastação” avança em Brasília, moradores como Alex Leite seguem convivendo com incertezas e medo. Cercado por casas rachadas e abandonadas, ele insiste em manter sua barbearia funcionando — mesmo com o movimento cada vez mais escasso.
“A última visita da Defesa Civil só confirmou que tem algo acontecendo na parte de trás das nossas casas, mas ninguém explica com clareza. Alguns comentaram que o peso das residências vizinhas poderia estar puxando o terreno, mas isso não aparece em nenhum laudo”, relata o barbeiro.
Sobre a possibilidade de realocação, Alex acredita que muitos aceitariam deixar o local. “Boa parte dos moradores toparia, sim. Do jeito que está, só piora.”
Outro lado
Sobre as vistorias realizadas pelo juiz federal André Granja em residências no bairro do Bom Parto, a Defesa Civil de Maceió informou que a ação tem como objetivo subsidiar o magistrado com informações técnicas que auxiliem na análise das solicitações apresentadas pela Defensoria Pública da União (DPU).
O órgão ainda esclareceu que as inspeções não têm como finalidade a ampliação do Mapa de Linhas de Ações Prioritárias, destacando que “a prerrogativa legal para qualquer alteração no documento é exclusiva da Defesa Civil de Maceió”.
Em resposta ao CadaMinuto, a Braskem informou que atua conforme o mapa definido pela Defesa Civil de Maceió, respeitando os parâmetros técnicos e as recomendações de especialistas nacionais e internacionais. Além disso, destaca que desde 2019, realiza ações para mitigar, reparar e compensar os efeitos da subsidência do solo nos bairros afetados.
“As medidas incluem a realocação e compensação financeira das pessoas realocadas, fechamento dos poços, monitoramento do solo, além de ações sociourbanísticas e ambientais, todas acordadas com as autoridades competentes e homologadas pela Justiça”, acrescenta. Leia na íntegra abaixo:
“A Braskem atua conforme o mapa definido pela Defesa Civil de Maceió, que respeita os parâmetros técnicos, além das recomendações de especialistas nacionais e internacionais. As áreas do entorno do mapa são periodicamente vistoriadas por um Comitê de Acompanhamento Técnico, do qual fazem parte a Defesa Civil Nacional e a Defesa Civil Municipal, e todos os relatórios produzidos pelo comitê até o momento não relacionam os problemas construtivos da área vistoriada no bairro do Bom Parto com a mineração de sal-gema, desativada desde 2019.
Desde 2019, a Companhia realiza ações para mitigar, reparar e compensar os efeitos da subsidência do solo nos bairros afetados. As medidas incluem a realocação e compensação financeira das pessoas realocadas, fechamento dos poços, monitoramento do solo, além de ações sociourbanísticas e ambientais, todas acordadas com as autoridades competentes e homologadas pela Justiça.
Até o momento, R$ 17,6 bilhões foram provisionados para as medidas previstas nos acordos assinados com as autoridades, e mais de R$ 12,7 bilhões já foram desembolsados pela companhia.”
Nota da Defesa Civil de Maceió
“A Defesa Civil de Maceió informa que a visita técnica realizada teve como objetivo a vistoria de residências localizadas na Área de Monitoramento 01 do Mapa de Linhas de Ações Prioritárias. A ação visa subsidiar o juiz federal com informações técnicas que contribuam para a tomada de decisões relacionadas às solicitações apresentadas pela Defensoria Pública da União.
O órgão acrescenta que as vistorias não têm como finalidade a ampliação do Mapa de Linhas de Ações Prioritárias e ressalta que a prerrogativa legal para realizar qualquer alteração no documento é exclusiva da Defesa Civil de Maceió.”
Fotos de capa e galeria: Jean Albuquerque
*Estagiária sob supervisão da editoria