Alagoas tem ganhado destaque nacional por implementar políticas públicas voltadas à primeira infância e à proteção de crianças e adolescentes, em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 35 anos em 2025.
Entre os principais avanços está a criação da Secretaria da Primeira Infância, primeira do tipo no país, responsável por coordenar o Programa CRIA – Criança Alagoana, que oferece transferência de renda e acompanhamento nutricional especializado a famílias em situação de vulnerabilidade.
Outro marco é a elaboração do Plano Estadual Decenal pela Primeira Infância, construído com a participação de instituições como OAB/AL, Ministério Público, Tribunal de Justiça e Defensoria Pública. O plano orienta políticas públicas voltadas a crianças de 0 a 6 anos.
No sistema socioeducativo, a criação da Escola Estadual da Socioeducação marca um avanço importante, ao investir na formação de profissionais e na reintegração social de adolescentes em conflito com a lei. Apesar dessas iniciativas, os índices de violência contra crianças e adolescentes seguem elevados, especialmente em regiões periféricas.
Combate à evasão e fortalecimento da escola como espaço de proteção
O promotor Gustavo Arns, coordenador do Núcleo de Defesa da Infância e Juventude do Ministério Público de Alagoas (MPAL), alerta que a evasão escolar permanece como um dos principais desafios. Para enfrentá-la, o órgão tem promovido ações intersetoriais voltadas à permanência qualificada de crianças e adolescentes nas escolas públicas.

Um dos destaques é o projeto “Sede de Aprender”, que visa melhorar a infraestrutura das escolas, garantindo acesso à água potável e a banheiros adequados — itens ainda ausentes em muitas comunidades.
O estado também é referência na adesão à plataforma Busca Ativa Escolar, em parceria com o UNICEF, que apoia municípios no combate à exclusão escolar. A atuação do MPAL inclui ainda a fiscalização do transporte escolar e a cobrança pela presença de psicólogos e assistentes sociais nas escolas, conforme prevê a Lei nº 13.935/2019.
Com base na nova Lei nº 14.811/2024 (Lei do Bullying e Cyberbullying), o Ministério Público tem implementado protocolos intersetoriais de prevenção à violência nas escolas, reforçando o papel da educação como espaço de cuidado e proteção.
Outro foco é a inclusão de crianças com deficiência, sobretudo com Transtorno do Espectro Autista (TEA), com recomendações e ações judiciais voltadas à garantia de políticas educacionais inclusivas e acompanhamento especializado.
A pauta da saúde mental também entrou na agenda institucional. Articulações com a Secretaria de Estado da Saúde e a Defensoria Pública buscam construir uma rede de atendimento humanizado a crianças e adolescentes em crise psiquiátrica.
Violência, subnotificação e atuação integrada da rede
Mesmo com os avanços, Gustavo Arns aponta que a falta de vontade política e o baixo investimento continuam sendo entraves sérios. “A omissão afeta diretamente serviços essenciais como educação, saúde e assistência social, dificultando o cumprimento dos direitos garantidos pela legislação”, afirmou.
Para o promotor, o aumento dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes é um dos dados mais alarmantes. Para enfrentá-lo, o MPAL criou o aplicativo “Aprender a Proteger”, voltado à capacitação de educadores para identificar sinais de abuso e romper o ciclo de subnotificação.
Ainda segundo Arns, o MP atua de forma integrada à rede de proteção, composta por conselhos tutelares, escolas, unidades de saúde e serviços sociais. Além de participar ativamente de fóruns intersetoriais, o órgão fiscaliza o funcionamento dos conselhos e promove a capacitação dos profissionais que atuam diretamente com crianças e adolescentes.
“O reconhecimento da criança como sujeito de direitos impulsionou a criação dos conselhos tutelares, fortaleceu a atuação judicial e fomentou políticas públicas mais estruturadas”, destaca Arns, ao avaliar os 35 anos do ECA.
Superação de paradigmas
Para o juiz Rafael Araújo, que está na Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude, apesar das dificuldades, os avanços que o ECA trouxe nas últimas três décadas são inúmeros.
“Para além da reestruturação legislativa implementada pelo Estatuto, que superou paradigmas ao passar a enxergar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos (o que chamamos de “doutrina da proteção integral”), o ECA também inovou em várias outras vertentes, com a criação dos Conselhos Tutelares, fortalecimento dos papeis do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Justiça da Infância e Juventude, expansão de políticas públicas voltada para a infância e juventude, entre outros”, exemplificou.

O magistrado explicou que a reformulação desses paradigmas da infância e juventude também permitiu que vários outros avanços tenham sido conquistados em todo o Brasil, com histórica redução da mortalidade infantil, da evasão escolar e da pobreza infantil.
Na esfera legislativa, por exemplo, houve a criação de um Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), proibição de castigos físicos ou tratamento cruel na educação infantil, combate ao bullying, consolidação do Marco Legal da Primeira Infância, estabelecimento de procedimentos adequados para a oitiva de crianças e adolescentes testemunhas ou vítima de violência e criação de mecanismos de proteção à violência doméstica e familiar.
Porém, apesar dos avanços, Rafael aponta que os desafios ainda são muitos. “O número de casos de violência contra crianças e adolescentes revelam um contexto bastante preocupante, embora também reflitam a notificação de situações outrora invisibilizadas e o próprio crescimento populacional. Segundo dados do Observatório da UFAL, no ano de 2009 foram registrados 379 casos de violência contra crianças e adolescentes, ao passo que em 2023 superaram as 3.000 notificações, ou seja, quase 8 vezes maior”, alertou.
O abandono e a evasão escolar também têm preocupado, especialmente após a pandemia da Covid-19, sendo registradas, apenas no ano de 2020, 30.000 crianças e adolescentes tenham se evadido da escola em Alagoas.
“A precarização e a sobrecarga do sistema têm sido o principal obstáculo para concretizar os direitos previstos no ECA, com ausência de investimentos efetivos na área com capacitação de agentes, aparelhamento adequado dos órgãos de proteção à infância e juventude, insuficiência de instituições de acolhimento entre tantos outros”, frisou.
Atuação
O Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, por meio da Coordenadoria da Infância e Juventude e dos juízes e juízas que atuam na área, tem adotado medidas com a finalidade de prevenir e combater a violência contra crianças e adolescentes, com ações como:
- Reuniões regulares com diversos órgãos de proteção à infância e juventude para articulação de políticas e fluxos de atuação;
- Acompanhamento e priorização dos processos que envolvem interesses de crianças e adolescentes, notadamente nos casos em que há acolhimento institucional, nas ações de adoção e destituição do poder familiar e nas relativas a crianças na Primeira Infância;
- Estímulo à adoção de crianças e adolescentes em instituições, bem como realização de palestras e eventos de divulgação nos meses de maio, com destaque para os Encontros Estaduais e Regionais de Adoção realizados anualmente em Maceió e Arapiraca;
- Capacitações regulares para agentes da infância de juventude, como Conselheiros Tutelares, membros das equipes multidisciplinares, e de agentes acerca da entrega de crianças para adoção;
- Auxílio na capacitação e inclusão no mercado de trabalho de adolescentes em instituições de acolhimento e jovens recém-saídos dessas instituições;
- Em parceria com os Poderes Legislativo e Executivo, o Tribunal de Justiça tem acompanhado a implementação de uma patrulha da Polícia Militar voltada ao atendimento e fiscalização de medidas de proteção aplicadas a crianças e adolescentes vítimas de crimes.
Atuação dos Conselhos Tutelares
Entre os principais gargalos está o funcionamento dos Conselhos Tutelares, órgãos municipais que deveriam estar na linha de frente da proteção, mas que muitas vezes operam com estrutura precária.
“Não é raro nos depararmos, nas cidades menores, com Conselhos que dividem um único carro com os órgãos da assistência social para atendimento de toda uma população predominantemente rural. Isso dificulta muito o trabalho desses órgãos”, alerta o juiz coordenador da Infância e Juventude de Alagoas.
Ele ressalta que, apesar das dificuldades, os conselheiros atuam com vocação e comprometimento. No entanto, aponta que a efetivação do ECA depende de um esforço contínuo e conjunto.
“A palavra que define a necessidade atual para a efetivação do ECA em Alagoas não é outra, senão investimento. Faz-se necessária a destinação de verba para a implementação das políticas públicas voltadas à infância e juventude que vão além de rubricas orçamentárias, mas que efetivamente cheguem aos órgãos de proteção e, ao fim e ao cabo, às crianças e adolescentes”, defende.
Alta demanda
O defensor público Fábio Passos de Abreu, que atua na 1ª Vara Criminal da Infância e Juventude, explica que as violações de direitos mais recorrentes, em Alagoas, consistem na falta de atendimento em saúde mental a adolescentes. “No Estado de Alagoas há grande demanda por serviços psicossociais, que não é suportada minimamente pela rede de atenção psicossocial. Necessita de ampliação urgente”, pontuou.
Ele também conta que a rede de proteção em Alagoas enfrenta desafios importantes, especialmente devido à sua constante necessidade de adaptação. “Com exceção dos órgãos ligados ao sistema de justiça, são frequentes as reorganizações das estruturas administrativas, o que pode resultar em mudanças de atribuições entre setores e remanejamento de servidores. Essas alterações, embora muitas vezes motivadas pela busca de melhorias, podem impactar a continuidade dos programas destinados a crianças e adolescentes, além de gerar mudanças nas prioridades e nos níveis de conhecimento institucionalizados”, disse.
Na área da criança e do adolescente, a consolidação de normas e conhecimentos demanda tempo e dedicação, por isso, a substituição de servidores que já vinham se dedicando à especialização nesse campo pode representar um novo ciclo de aprendizado, necessário para garantir a qualidade das ações.
“Além disso, o constante mapeamento da rede é um desafio importante, especialmente em função das frequentes reorganizações administrativas. Esse contexto exige um esforço coletivo e contínuo, tanto do sistema de justiça quanto de todos os profissionais envolvidos na rede de proteção, para garantir a efetividade das ações voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes”, apontou.

Estrutura precária e desafios intersetoriais
Para a advogada Mariana Sampaio, presidente da Comissão de Defesa da Criança e do Adolescente da OAB/AL, ainda há gargalos estruturais que comprometem a efetividade da rede de proteção no estado.
“Temos sérios problemas de estrutura e pessoal nos órgãos que compõem o Sistema de Garantia de Direitos. A intersetorialidade é um desafio, com falhas de comunicação e ausência de fluxos definidos, o que dificulta a responsabilização de agressores e a proteção integral prevista no ECA”, afirmou.
A especialista também chama atenção para a naturalização da violência em contextos de extrema pobreza. “Muitas violências não são denunciadas por medo, desconhecimento dos direitos ou falta de suporte institucional”, completou.
Segundo Sampaio, a evasão escolar segue sendo uma preocupação prioritária. A OAB/AL atua de forma interinstitucional com o MP, conselhos tutelares e secretarias para reforçar a busca ativa escolar.
Além disso, destaca que a instituição desenvolve o projeto “OAB nas Escolas”, que leva palestras e atividades educativas às unidades de ensino com foco na prevenção à evasão e na promoção da cidadania.
“Nosso objetivo é garantir acesso à educação contínuo, de qualidade e com respeito à diversidade, especialmente para as populações historicamente marginalizadas”, acrescenta.
ECA segue como pilar, mas consolidação da proteção exige compromisso coletivo
A Lei Henry Borel, recentemente aprovada, já está sendo aplicada em Alagoas. O estado passou a oferecer atendimento 24h por meio do CRAD (Centro de Referência de Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Violência), vinculado à Secretaria de Prevenção à Violência (SEPREV). Está em tramitação na Assembleia Legislativa o projeto que cria a “Patrulha Henry Borel”, voltada à fiscalização de medidas protetivas e à ampliação da rede de proteção.
Segundo a OAB/AL, além dos casos históricos de negligência e violência, aumentam as demandas relacionadas à inclusão de crianças com deficiência, discriminação racial, violência de gênero e LGBTQIA+fobia.
“Essas mudanças mostram uma sociedade mais consciente e disposta a denunciar. Mas exigem da rede uma resposta mais técnica, articulada e sensível às diversidades”, avalia Mariana.
Aos 35 anos, a especilista destaca que o ECA segue como pilar da política de proteção à infância e adolescência no Brasil. Em Alagoas, os avanços são reais, mas o caminho para garantir a plena efetivação dos direitos ainda é longo.
“Precisamos consolidar uma cultura de respeito à infância e à adolescência, com protagonismo das famílias, das comunidades e do Estado. O ECA não é apenas uma lei. É um compromisso coletivo com o futuro”, concluiu.
*Estagiário sob supervisão da editoria
Foto de capa: Wilson Dias/Agência Brasil