Com a aprovação do Projeto de Lei 2.159/2021 — conhecido como PL da Devastação — na Câmara dos Deputados, cresce o alerta sobre os impactos do desmonte do licenciamento ambiental, especialmente em estados vulneráveis como Alagoas.
O texto, aprovado por 267 votos a favor e 116 contra na madrugada desta quinta-feira (17), agora depende da decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancionar ou vetar a proposta.
Se entrar em vigor, o projeto flexibilizará exigências ambientais para empreendimentos considerados “estratégicos para o desenvolvimento econômico”, incluindo a mineração — o que, para especialistas e movimentos sociais, é um grave risco.
Em Alagoas, a tragédia provocada pela Braskem, que afundou bairros inteiros em Maceió e forçou mais de 60 mil pessoas a abandonarem suas casas, é o exemplo mais contundente do que pode acontecer quando a exploração do solo ignora critérios técnicos e sociais.
“A Braskem deixou de ser geradora de empregos para se tornar criminosa”
Em um discurso firme na Câmara, o deputado federal alagoano Alfredo Gaspar (PL) votou contra o PL e fez um apelo direto contra a inclusão da mineração entre os setores beneficiados pelas novas regras.
“No meu estado, uma mineradora chamada Braskem deixou de ser uma geradora de empregos para se tornar uma criminosa. Ela destruiu o patrimônio, a memória e o futuro de milhares de alagoanos. Como quem viu de perto essa tragédia, jamais poderia concordar com esse tipo de projeto”, afirmou.
Gaspar relembrou que bairros inteiros foram transformados em ruas fantasmas, com casas, escolas e centros de saúde reduzidos a escombros. Ele também denunciou a relação histórica entre a Braskem e setores da política local.
“É verdade: a Braskem financiou muitos políticos e comprou consciências. E o resultado foi uma tragédia absoluta. Uma tragédia que ceifou vidas, não por acidente, mas pelo desespero causado pela irresponsabilidade e impunidade.”
Desmonte da política ambiental em Maceió
A preocupação com o enfraquecimento da proteção ambiental se intensifica com o contexto local. No início de 2025, a prefeitura de Maceió sancionou a Lei Delegada nº 012/2025, que extinguiu a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semurb), transferindo suas funções para uma estrutura subordinada diretamente ao gabinete do prefeito JHC. Para ambientalistas, a medida compromete a autonomia técnica e a transparência das decisões ambientais.
Essa fragilização ocorre enquanto crescem denúncias de destruição de manguezais e restingas para empreendimentos imobiliários, que têm afetado comunidades pesqueiras e a biodiversidade local. Também são citadas as enchentes frequentes na Região Metropolitana e a privatização de praias como reflexo da ausência de um planejamento ambiental efetivo.
Alerta da ciência e mobilização popular
A professora Marília Grugiki, do curso de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), alerta que o PL enfraquece drasticamente os órgãos ambientais ao dispensar etapas cruciais do licenciamento, como a análise técnica e a participação da sociedade. “Isso transfere a responsabilidade para os próprios empreendedores e abre margem para abusos. É um retrocesso inaceitável”, disse.
Ela também lembra que a Constituição garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e que esse projeto atenta contra esse princípio. “A degradação ambiental compromete a saúde pública, a segurança e a economia. A universidade deve ser aliada da sociedade na construção de políticas públicas baseadas em conhecimento técnico, ético e científico.”
Quais são as principais mudanças propostas?
Os defensores do projeto, em sua maioria ligados à bancada ruralista, argumentam que a proposta visa “destravar” obras consideradas estratégicas. No entanto, o que está sendo chamado de “modernização” pode, na verdade, resultar em uma grande desregulamentação da política ambiental brasileira. Veja a seguir, os principais pontos de mudança:
1. Transferência de responsabilidade a estados e municípios
O projeto elimina uma lista mínima nacional de atividades sujeitas a licenciamento, deixando que cada estado ou município defina suas próprias regras. Isso pode gerar competição entre entes federativos para atrair investimentos, reduzindo exigências ambientais e criando uma “corrida para o fundo do poço”.
2. Criação de novas licenças com menos rigor
Licença Ambiental Especial (LAE): permitiria ao governo federal aprovar rapidamente projetos considerados estratégicos, como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.
Licença Ambiental Única (LAU): substitui as etapas tradicionais do licenciamento por uma única autorização, que engloba instalação, operação e monitoramento, tudo de uma só vez.
Ampliação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC): o empreendedor apenas preenche um formulário se comprometendo com regras ambientais. A proposta estende essa modalidade a empreendimentos de médio impacto, mesmo após o STF ter limitado seu uso apenas a atividades de baixo risco.
Com essas alterações, grande parte dos empreendimentos, inclusive os da indústria de mineração, poderiam se autolicenciar — ou seja, funcionar com fiscalização mínima e sem a devida análise de riscos ambientais.
3. Dispensa de licenciamento para diversas atividades
O texto isenta de licenciamento ambiental atividades agropecuárias de pequeno porte, projetos de saneamento, redes elétricas e melhorias em obras já existentes. Para essas atividades, bastaria uma autodeclaração do empreendedor, sem a necessidade de estudos de impacto. Isso contraria decisões do STF que reconhecem o licenciamento como essencial à proteção ambiental.
4. Redução de estudos de impacto
Órgãos licenciadores poderão liberar empreendimentos sem exigir estudos ambientais completos, caso considerem que não há impacto relevante — sem precisar justificar tecnicamente essa decisão. Para o Observatório do Clima, isso equivale a dar um "cheque em branco" a gestores que podem estar sujeitos a pressões políticas ou econômicas.
5. Enfraquecimento das condicionantes ambientais
O projeto limita as obrigações que podem ser impostas a empresas para mitigar os danos de seus empreendimentos. Isso enfraquece a responsabilização das companhias por efeitos indiretos ou de longo prazo, como o deslocamento de comunidades ou sobrecarga de serviços públicos, repassando ao Estado (e ao contribuinte) a conta desses impactos.
Além disso, abre margem para que condicionantes sejam judicializadas e questionadas, dificultando medidas de prevenção ou reparação de desastres como os de Mariana e Brumadinho.
6. Redução da participação de órgãos especializados
Órgãos como a Funai, o Iphan e o ICMBio perderiam poder de decisão no processo de licenciamento. Seus pareceres deixariam de ser obrigatoriamente considerados. Mesmo em áreas protegidas, o ICMBio só seria ouvido se a unidade de conservação estivesse diretamente sobreposta ao empreendimento.
7. Desconsideração de comunidades tradicionais não reconhecidas
O projeto reconhece apenas territórios indígenas homologados e quilombolas titulados, ignorando comunidades tradicionais em processo de reconhecimento, como seringueiros, ribeirinhos e povos de terreiro. Com isso, empreendimentos nessas áreas poderiam ser licenciados sem qualquer consulta ou avaliação de impacto.
8. Menor controle sobre uso de água e solo
O PL desvincula o licenciamento de exigências como a autorização para uso da água ou ocupação do solo. Projetos poderiam avançar sem considerar, por exemplo, se haverá água suficiente para abastecer comunidades vizinhas a uma hidrelétrica ou plantação irrigada.
9. Participação social limitada
A proposta também reduz os mecanismos de participação popular. Audiências públicas, por exemplo, passam a ser facultativas e limitadas. A escuta de comunidades afetadas deixa de ser obrigatória, enfraquecendo a transparência do processo.
O que pode acontecer agora
Com o projeto nas mãos de Lula, o futuro do PL ainda é incerto. A pressão de movimentos sociais, cientistas e parlamentares contrários à proposta deve aumentar nos próximos dias. Caso o presidente opte pelo veto total ou parcial, o Congresso ainda poderá derrubá-lo.
Para o Coletivo Alagoas Contra o PL da Devastação, resistir ao projeto é essencial para impedir a repetição de tragédias como a da Braskem. “É uma luta pela vida, pelos territórios, pela justiça ambiental e contra a lógica de exploração que historicamente ignora os mais vulneráveis em nome do lucro”, afirma o grupo.