PEC das Drogas "pode causar retrocesso e aumento do encarceramento", diz professor

22/04/2024 06:00 - Especiais
Por Jean Albuquerque
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A PEC das Drogas, que criminaliza o porte e a posse de qualquer quantidade de entorpecentes, foi apresentada pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e recentemente aprovada em dois turnos, de maneira célere no Senado Federal, gerando intensas críticas de setores da sociedade civil, organizações de Direitos Humanos, juristas e movimentos sociais.

A maioria dos senadores alagoanos se posicionaram contra a medida: Fernando Farias (MDB) e Renan Calheiros (MDB). Apenas Rodrigo Cunha (Podemos) votou a favor.

Após a aprovação no Senado, o texto foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, presidida pela deputada bolsonarista Caroline de Toni (PL-SC), com a assinatura do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Antes de ser votada em Plenário, a emenda precisa passar pela CCJ e aguardar 40 sessões.

Para compreender o impacto da medida na capital alagoana, o Cada Minuto entrevistou advogados que veem a norma como uma resposta do Congresso ao julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização da maconha. 

Alem disso, os entrevistados afirmam que a PEC contribui para o aumento do encarceramento da população negra periférica no Estado, ao passo que delega à autoridade policial e ao judiciário,  o poder de decidir sobre quem pode ser enquadrado como usuário e traficante.

Em relação ao julgamento, o STF decide quanto à constitucionalidade do Artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006), que estabelece a diferenciação entre usuário e traficante, aplicando penas mais brandas.

No caso específico em análise, a defesa de um indivíduo condenado pleiteia que o porte de maconha para consumo próprio não seja mais considerado crime. O réu em questão foi detido com uma quantidade de três gramas da substância.

PEC das Drogas: retrocesso e resposta ao STF

O advogado do Núcleo de Advocacia Racial do Instituto do Negro de Alagoas (Ineg/AL), Pedro Gomes, destaca que a PEC das Drogas representa um retrocesso, abrindo margem para que os mecanismos legais que visam diferenciar usuário de traficante não avancem no judiciário brasileiro.

"Essencialmente, ela [a PEC] busca encerrar o debate em curso no Supremo sobre a posse e o porte, por exemplo, de maconha em determinadas quantidades, e de outras drogas", esclarece.

Para Gomes, "a discussão que ocorre no Supremo hoje, e a que tentamos travar nos tribunais, é muito saudável, pois busca aprimorar a legislação de drogas e retirar a descriminalização do porte de maconha em quantidades ínfimas, pois é absurdo ser preso por esse tipo de delito", acrescenta Gomes.

A aprovação da proposta pela Câmara dos Deputados pode complicar o processo do STF, que discute a descriminalização da maconha desde março deste ano. Quando uma matéria, antes regulada apenas pela legislação penal, é incorporada à Constituição, adquire jurisdição superior, interferindo no acompanhamento do julgamento pelo STF.

Além disso, a PEC pode ser questionada em outras esferas do direito e declarada inconstitucional se violar cláusulas constitucionais que são princípios inalteráveis.

André Rocha Sampaio fala sobre o impacto da PEC das Drogas em Maceió - Foto: Maciel Rufino 

André Rocha Sampaio, advogado e doutor em ciências criminais pela PUC do Rio Grande do Sul, e professor do Centro Universitário de Maceió - UNIMA/Afya, afirma que não cabe à Constituição envolver-se em questões de criminalidade e criminalização.

"Vejo com maus olhos, pois a Constituição, como Carta Magna, deve traçar apenas as diretrizes principais para o ordenamento jurídico", destaca.

Para o professor, “é uma uma PEC que diminui garantias individuais como se ela fosse resolver os problemas de combate às drogas e não é por aí, a gente tem essa mesma estratégia de combate há décadas. Usa-se do jargão guerra às drogas, mas todo ano as drogas vencem essa guerra”. 

Encarceramento em massa da juventude negra

Sobre o tema, o advogado do Ineg explica que o retrocesso imposto pelo dispositivo prejudica a sociedade, especialmente a população jovem periférica de Alagoas, resultando em um enorme encarceramento desse grupo etário por quantidades mínimas de uso de drogas, ou pelo porte de drogas ínfimas sendos consideradas como tráfico.

Ele questiona as circunstâncias das apreensões de drogas em Alagoas e os padrões adotados que têm como alvo as populações menos favorecidas do Estado, e consequentemente, os jovens negros.

"A análise mostra a fragilidade dos argumentos e como os padrões adotados visam sempre a população jovem negra periférica de Alagoas", defende Gomes. Ele menciona também que a quantidade de substância apreendida para que uma pessoa branca seja considerada traficante geralmente é maior do que para pessoas negras.

 A fala do advogado pode ser ilustrada a partir de dados publicados em reportagem do Olhos Jornalismo em colaboração com o Instituto Sou da Paz, que mostram uma discrepância na classificação de negros e brancos presos por delitos relacionados a drogas no Estado, entre 2011 e 2020.

Segundo o levantamento, a Polícia Civil de Alagoas (PC-AL) tende a rotular negros detidos com drogas como traficantes em uma proporção significativamente maior do que brancos. Por exemplo, dos 9.934 suspeitos de raça negra detidos por tráfico, apenas 15,96% são classificados como usuários. Enquanto isso, dos 1.894 brancos presos por tráfico, 22% são categorizados como usuários.

Essas descobertas foram extraídas da série histórica do perfil de indivíduos detidos por incidentes relacionados a drogas utilizando dados do setor de Procedimentos Policiais Eletrônicos (PPE) da Assessoria Técnica de Estatística e Análise Criminal da PC-AL, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Pedro Gomes explica que emenda pode provocar encarceramento em massa da juventude negra - Foto: Arquivo Pessoal

Diferenciação entre usuário e traficante

A PEC em análise na Câmara delega à autoridade policial e ao judiciário a responsabilidade de diferenciar usuário de traficante. Quanto ao julgamento no Supremo, há a possibilidade de estabelecer uma quantidade que resolva essa questão, que é um dos pontos centrais da decisão.

Gomes critica os critérios atuais para essa diferenciação. "O que pode ser considerado um traficante em Maceió pode ser considerado um usuário em Arapiraca, por exemplo. Não há critério objetivo determinante."

O professor universitário, por sua vez, salienta que a responsabilidade de diferenciar usuários de traficantes recai sobre a polícia. No entanto, ele adverte que os agentes de segurança pública estão inseridos em uma sociedade permeada por preconceitos e racismo estrutural, o que pode influenciar indevidamente suas decisões, mesmo que de forma inconsciente.

"Tudo isso vai fazer com que, muitas vezes, você selecione os periféricos, os pobres, os negros, e deixe de fora os moradores de áreas nobres, que não são alvos do sistema", acrescenta. 

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