“Já fui muito! Dos 16 aos 23, rolava muita coisa no Orákulo da cena alternativa e tinha também o Banga Bar. Depois dos 23 aos 27 rolava o bar da Rosa Mossoró.” A lembrança é do fotógrafo Gabriel Moreira, 32 anos, que viveu a juventude pelas ruas estreitas do histórico bairro do Jaraguá. 

Hoje, basta caminhar por ali para perceber o espaço é o ponto de encontro entre o passado e o presente, onde ladrilhos antigos dividem espaço com a vida noturna sempre acesa. O chão que um dia recebeu bondes se mistura aos bares e casas culturais que iluminam o bairro e guardam boa parte da memória afetiva da cidade. 

Do Rex Jazz Bar ao Theatro Homerinho, Jaraguá pulsa cultura e se afirma como coração artístico de Maceió. É também na rua Rocha Cavalcante, o famoso Beco da Rapariga, que essa vibração se materializa em eventos, bares e uma cena independente que movimenta a cidade.

Jaraguá não é apenas um ponto no mapa do entretenimento; é um território de identidade, conflito e pertencimento. Seus becos e construções preservam camadas de história que resistem a projetos de higienização e à tentativa constante de emoldurar o bairro dentro de uma “cidade ideal”.

 

Beco da Rapariga Desconhecida guarda cultura maceioense – Foto: Madu Cardoso

 

Becos de memória, ruas de resistência

A remoção da placa “Beco da Rapariga Desconhecida”, substituída por “Bem-vindo ao Beco”, em setembro, revitalizou debates sobre memória, identidade e a disputa simbólica sobre quem tem direito de narrar a cidade. A história do bairro é marcada justamente por esse embate entre preservação da cultura popular e tentativas de apagar expressões consideradas incômodas ou fora de padrões institucionais.

Originalmente um bairro do porto, Jaraguá era o destino favorito para os passeios das famílias tradicionais, especialmente na Praça Dois Leões, cheia de jardins e estátuas de ferro. Mas desde o século XIX, ele já revelava seus contrastes: bastava caminhar algumas ruas para encontrar sobrados iluminados, casas noturnas e cabarés que conviveram lado a lado com a elite.

Para o historiador Domício Fernandes, essa dualidade permanece. Ele lembra que o bairro sofreu um processo de abandono ao longo do século XX, perdendo moradores e vivência cotidiana. Mesmo assim, continua sendo um dos territórios mais expressivos da cidade. “Agora se vê um movimento para entender a importância histórica e cultural daquele bairro para Maceió. Ele é o nosso Recife Antigo”, diz.

Memórias como patrimônio vivo

Domício também destaca que, antes da centralização da Ufal no campus A. C. Simões, Jaraguá abrigava uma cena cultural universitária forte, com festas, bailes e festivais produzidos pelo DCE. Essa tradição marcou gerações e ajudou a consolidar o bairro como lugar de encontro. “O DCE, nas décadas de 80 e 90, lançava discos desses festivais. Tinham centros de cultura, era muito vivo”, relembra.

Com a mudança da universidade e a saída de moradores, o bairro ganhou fama de área marginalizada. Ainda assim, a vida noturna resistiu — e voltou a crescer com força. Para Domício, as tentativas recentes de renomear ou higienizar espaços como o Beco da Rapariga revelam uma disputa mais profunda: “É quase uma expulsão moral. Há uma tentativa de transformar o bairro em mercadoria, apagando sua memória popular e seus símbolos dissidentes.”

Ele ressalta que a gentrificação tem avançado sobre Jaraguá, enquanto a cultura popular é pressionada por narrativas de enobrecimento urbano e turismo de elite. “Onde fica o povo dentro dessa situação? O bairro perde a noção de espaço simbólico e de patrimônio”, afirma.

 

Antiga Praça Dois Leões, em 1918 – Foto: Jaraguá História e Boêmia, 2004.

 

Jaraguá em movimento

Apesar das disputas, Jaraguá segue pulsando. Sob as luzes amareladas da Avenida Sá e Albuquerque, a vida noturna e cultural da cidade se renova. Filipe Mariz, o Possa, produtor cultural do Rex, diz que o bairro virou um ponto de encontro múltiplo. “A vida noturna pulsante permite que as pessoas encontrem diversas opções de entretenimento num raio de 1 km”, afirma.

O Rex, lembra ele, foi um dos primeiros bares da reorganização cultural da região. “É gratificante ver prédios antigos ganhando vida mais uma vez, com gente vivendo o ápice da juventude”, diz.

Entre os movimentos que passaram a ocupar o bairro, a Festa das Sáficas se tornou símbolo recente da diversidade local. Criada em 2024, no Rex, o evento reafirma a presença lésbica na cena cultural de Maceió. “Faltava um espaço seguro e que fomentasse a cultura sáfica. E o Jaraguá sempre foi familiar para nós, com uma cena queer muito forte”, explica Clariar, produtora do evento.

Outro exemplo é a Feirinha do Quintal, que começou como um pequeno encontro de arte e empreendedorismo no Beco da Rapariga e hoje ocupa boa parte da Sá e Albuquerque. Para Ingrid Ferreira, organizadora, a proposta sempre foi criar um ambiente acolhedor, acessível e que valorizasse tanto a cultura local quanto o próprio bairro.

 

Festa das Sáficas no Rex Jazz Bar – Foto: Divulgação.

 

Entre megaeventos e artistas locais

Domício chama atenção para um contraste que define Jaraguá hoje: enquanto o bairro recebe os maiores shows da capital, geralmente com atrações de fora, é nas ruas estreitas da Sá e Albuquerque e do Beco da Rapariga que os artistas locais realmente encontram espaço. “Esses lugares contemplam quem é daqui — os músicos, os artistas, as pessoas que vêm das periferias. O significado disso é enorme”, afirma.

No fim das contas, o bairro se mantém na luta para permanecer sendo o que sempre foi: um território de encontros, tensões, memória e reinvenção. Um lugar onde Maceió se reconhece — na cultura viva, no conflito e na permanência teimosa do que resiste.

*Estagiária sob supervisão da editoria 

Foto de capa: Pei Fon/Secom Maceió