Começamos a atravessar uma fronteira perigosa quando passamos a confundir curiosidade com direito, opinião com diagnóstico e liberdade de expressão com autorização para ferir. Em algum momento, o debate público se permitiu acreditar que o corpo do outro, sua forma, seu peso, suas marcas e suas mudanças, era um assunto disponível, livre, aberto à avaliação coletiva. Não é. Nunca foi.

O corpo de alguém não é arena de discussão. Não é índice de saúde, barômetro de felicidade ou medidor de fracasso. Não é objeto de estudo improvisado para quem deseja exercitar julgamentos, nem vitrine onde desconhecidos projetam seus próprios preconceitos. Ainda assim, assistimos diariamente a essa invasão travestida de interesse público, como se houvesse legitimidade em transformar vulnerabilidades em conteúdo.

É sintoma de uma sociedade adoecida, e adoecida profundamente, essa urgência em comentar a aparência de quem não pediu palco. Tornamos o corpo um espetáculo e a crueldade um passatempo. E para justificar a violência, basta a frase pronta: “é a minha opinião”. Como se opinião não carregasse consequência. Como se palavras não cortassem. Como se respeito fosse opcional.

A verdade é simples e incômoda: o corpo alheio não pertence ao tribunal da internet, nem ao juízo moral de quem quer que seja. Ele pertence apenas ao sujeito que o habita, às suas dores, às suas narrativas e às suas escolhas. Fora disso, tudo que se ergue é violação.