Poucos episódios sintetizam com tanta clareza o que há de mais perverso na burocracia pública quanto a espera interminável dos profissionais aprovados no concurso da Sesau e da Uncisal, realizado em 2002. Mais de vinte anos depois, a chamada reserva técnica segue no limbo, sustentada por promessas vazias, decisões judiciais descumpridas e governos que se sucedem sem jamais encarar o problema com seriedade. É um caso que ultrapassa a esfera administrativa. É uma ferida moral aberta que envergonha o Estado de Alagoas.
O Ministério Público Estadual ingressou com uma ação civil pública exigindo a nomeação dos aprovados. A Justiça reconheceu o direito, a sentença transitou em julgado e a obrigação passou a ser definitiva. Mesmo assim, o Estado ignorou o que ele próprio deveria ser o primeiro a cumprir. Só em 2022, depois de anos de protelações, veio o Decreto nº 82.317, que nomeou parte dos candidatos. Um gesto tardio, incompleto e insuficiente, pois a execução judicial segue inconclusa e o governo, em vez de resolver, empurra o caso com explicações frágeis e promessas difusas.
Enquanto a máquina pública produz justificativas, vidas seguem sendo corroídas pelo tempo. Há quem tenha envelhecido esperando o chamado. Há quem tenha morrido sem ver a justiça valer. São pessoas que estudaram, passaram, conquistaram o direito legítimo de servir ao povo e, ainda assim, foram deixadas de lado por um Estado que prefere gastar com contratos temporários e terceirizações a cumprir uma sentença.
Mesmo diante das dificuldades para acessar integralmente os autos do processo, os aprovados permanecem mobilizados e firmes na cobrança do que é elementar em um Estado de Direito: o cumprimento da lei. A mobilização reivindica a convocação imediata dos integrantes da reserva técnica, que há décadas esperam pelo chamado. A justiça, já havia determinado a nomeação de 387 aprovados e a substituição de servidores terceirizados. O Estado, em vez de cumprir a decisão, manteve mais de mil contratos temporários nos postos que deveriam ser ocupados pelos concursados. O Tribunal de Justiça reiterou a ordem e impôs multa diária de dez mil reais pelo descumprimento. Dois anos depois, nova determinação fixou o prazo de quinze dias para a convocação e exigiu ampla divulgação em rádio e televisão. Nada foi feito. O poder público permanece inerte, como se a passagem do tempo pudesse reescrever a sentença e dissolver a obrigação que ele próprio insiste em ignorar.
O drama da reserva técnica não é responsabilidade de um único governo. É um fracasso coletivo que atravessa gerações políticas. Ronaldo Lessa (PDT) realizou o concurso e o deixou sem desfecho. Teotonio Vilela (PSDB) manteve o impasse. Renan Filho (MDB), que governou entre 2015 e 2022, manteve o caso em banho-maria, administrando o problema sem resolvê-lo. E agora, sob Paulo Dantas (MDB), o discurso de valorização do servidor se choca com a prática de anunciar abertura de novos concursos enquanto os aprovados de 2002 continuam à espera. O ciclo se repete. Promessas se reciclam. A omissão se perpetua.
Mais grave ainda é a incoerência institucional. O próprio governo admite que há reserva técnica e reconhece o direito à nomeação, mas mantém o impasse sob o argumento da dificuldade de localizar candidatos. É como se o Estado, que deveria ser o guardião da legalidade, se escondesse atrás de burocracias para não cumprir o que a justiça mandou.
O que se vê, na prática, é a transformação do serviço público em instrumento de conveniência política. Enquanto os aprovados aguardam por nomeação, multiplicam-se contratos temporários e terceirizações usados como moeda de troca e cabide de empregos. Em vez de priorizar quem estudou, se preparou e conquistou o direito de ingressar por concurso, o Estado opta por atender interesses de grupos e aliados, distribuindo cargos precários conforme o alinhamento político do momento. Esse modelo clientelista e fisiológico não apenas afronta a Constituição, mas corrói a confiança da sociedade nas instituições. É a velha lógica do favor substituindo o direito, da conveniência se sobrepondo à legalidade, e da política reduzida a rede de indicações em vez de projeto de Estado.
Não há mais desculpas possíveis. A sentença favorável. As listas são públicas. O que falta não é norma, é vontade política. O Estado de Alagoas deve a esses profissionais muito mais do que uma vaga. Deve o reconhecimento de que falhou, por inércia, desinteresse ou conveniência, em cumprir um dever elementar. É impossível falar em ética administrativa enquanto o poder público insiste em ignorar uma decisão judicial.
Cada governo que passa sem resolver esse caso carrega um pouco da culpa histórica de um Estado que não respeita seus próprios atos. A cada adiamento, a cada promessa feita e esquecida, cresce o descrédito das instituições e a sensação de que a justiça, quando muito tarda, é mais uma forma de injustiça.
Apesar de todo o descaso, o que impressiona é a persistência dos aprovados. Ao longo dessas duas décadas, mantiveram-se firmes, organizados e mobilizados, sem jamais desistir de ver o direito reconhecido. Participaram de audiências, marchas, atos públicos e vigílias, movidos pela convicção de que o Estado não pode ignorar quem conquistou legitimamente o direito de servir à população. A abnegação desse grupo é uma lição de resistência e dignidade. A luta deles é também a luta de todos que acreditam no concurso público como instrumento de justiça social, de valorização do conhecimento e do esforço coletivo, e como forma de garantir o acesso ao trabalho público de maneira transparente, digna e democrática.
Defender a convocação desses profissionais é defender a própria ideia de igualdade de oportunidades e de respeito às regras que sustentam o Estado de Direito.