Fui procurado pela professora Vanieire dos Santos Oliveira Ramos, que primeiro me enviou mensagem pelo Instagram e depois conversamos por WhatsApp. Historiadora formada pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), professora efetiva da rede estadual e atuante na Escola Estadual Professor Edmilson de Vasconcelos Pontes, ela relatou com firmeza e serenidade o que estava acontecendo: seu trabalho pedagógico sobre gênero e sexualidade, desenvolvido com alunos do 9º ano, havia se tornado alvo de um ataque público promovido por vereadores da extrema-direita na Câmara Municipal de Maceió.
A denúncia foi levada ao plenário pelo vereador Caio Bebeto (PL), e repercutida por Leonardo Dias (PL), ambos conhecidos pela atuação alinhada a pautas bolsonaristas da extrema-direita. O alvo era o uso, em sala de aula, da cartilha “Vamos falar sobre gênero e sexualidade no IFSP?”, produzida pelo Núcleo de Estudos sobre Gênero e Sexualidade (NUGS) do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Nenhuma irregularidade foi constatada, tampouco qualquer violação de conteúdo pedagógico. O que se viu foi a tentativa de transformar um material educativo, elaborado com base científica e validado institucionalmente, em combustível para pânico moral e espetáculo político.
Durante a sessão, a vereadora Teca Nelma (PT) reagiu de imediato às falas dos vereadores que, em meio aos ataques, chegaram a se referir à professora de forma desrespeitosa, chamando-a de “traste”. Em defesa da servidora e do papel da educação, Teca afirmou sentir dó dos parlamentares “pelos horizontes tão curtos, por não entenderem a multiplicidade da vida e por transformarem em bandeira política” o que deveria ser acolhimento e aprendizado. Ela lembrou que a escola é lugar de diálogo, de escuta e de respeito, e criticou a incapacidade dos colegas da Câmara de enxergar a importância da diversidade como valor humano e pedagógico, classificando o debate promovido por eles como profundamente ideológico e distante da realidade.
A cartilha do IFSP é um documento exemplar em termos de responsabilidade pedagógica e compromisso público. Elaborada por professores, pesquisadores e técnicos da Rede Federal, é uma publicação oficial que orienta educadores na promoção do respeito à diversidade e no combate à desinformação. Seu conteúdo é fundamentado em evidências científicas, dialoga com marcos legais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ECA, a BNCC, a Lei Maria da Penha, e reafirma o dever das escolas de abordar o tema com seriedade e base ética.
Em um de seus trechos, o texto esclarece: “Ideologia de gênero é uma expressão inventada por pessoas conservadoras fundamentalistas e obscurantistas que não aceitam as conquistas das pessoas LGBTQIAPN+. Por outro lado, “gênero” é uma categoria de análise científica que possui vasta produção acadêmica em praticamente todas as áreas do conhecimento.” E adiante reforça, “essa ideia equivocada de que não se pode falar sobre gênero e sexualidade na escola foi propagada pelo movimento Escola Sem Partido e adeptos da pseudoteoria da ideologia de gênero. Existem várias leis que demonstram o contrário.”
Nada há, portanto, de doutrinário ou ilegal no material produzido pelo IFSP. Trata-se de uma referência nacional reconhecida por sua clareza didática, rigor conceitual e compromisso com os direitos humanos. É um trabalho que honra a Rede Federal e expressa o papel essencial dos NUGS: integrar ciência, pedagogia e cidadania em defesa da educação pública.
O projeto desenvolvido pela professora Vanieire, intitulado “Gênero, Sexualidade e Respeito: construindo uma escola sem preconceitos”, foi aprovado pela gestão escolar e parte da escuta ativa dos próprios alunos, que escolheram o tema como prioridade para o segundo semestre. O tema do projeto integrador foi de escolha dos alunos durante a escuta ativa, conforme estabelecido pela Secretaria de Educação do Estado de Alagoas (SEDUC/AL). O plano de trabalho estabelece como objetivo “promover a conscientização e o respeito à diversidade de gênero e sexualidade, contribuindo para a redução do bullying e do preconceito e fortalecendo a convivência saudável entre os estudantes”.
Como explicou a professora, “a cartilha é didática, traz dados e informações pra gente combater discursos sem fundamentação teórica. Ela não induz ninguém a nada. Pelo contrário, desmistifica preconceitos e explica com base científica o que é identidade de gênero e orientação sexual”. Em suas palavras, o ataque político não passa de “falta de leitura e desinformação travestida de moralidade”.
A ofensiva parlamentar contra a cartilha é, portanto, um ato de censura política disfarçado de preocupação com valores. É o uso da máquina pública e da retórica religiosa para intimidar professores e interditar o conhecimento. A cartilha do NUGS não é uma invenção ideológica, mas uma política institucional da Rede Federal de Educação, fruto de pesquisa, diálogo e compromisso com a dignidade humana.
Como professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) e membro do Núcleo de Diversidade, Gênero e Sexualidade (NUGEDIS) do Campus Maceió, sei da relevância desse trabalho. Os núcleos de diversidade, gênero e sexualidade da Rede Federal não são espaços de militância partidária, mas de formação cidadã, de acolhimento e de enfrentamento à violência e à ignorância. Representam o que a escola pública tem de mais nobre: a coragem de educar para a liberdade.
Falar sobre gênero, sexualidade e respeito não é doutrinar, é educar. É cumprir a função social da escola. E é exatamente isso que a extrema-direita teme: uma juventude que pense, questione e não aceite o ódio como forma de poder.
A liberdade de ensinar é um direito constitucional e uma trincheira da democracia. Sempre que um professor é atacado por exercer seu ofício com responsabilidade e ciência, é a sociedade inteira que se apequena.
A escola pública seguirá sendo o território da liberdade, e nenhuma cruzada moral será capaz de calar quem ensina com verdade e coragem.
Encerrando este texto, registro meu apoio e minha solidariedade à professora Vanieire dos Santos Oliveira Ramos injustamente exposta e constrangida, alvo de um ataque covarde e desnecessário. Em nenhum momento os vereadores buscaram diálogo, ouviram a docente ou procuraram compreender o projeto que ela desenvolvia com seus alunos. Optaram pela espetacularização e pelo desrespeito a uma servidora pública que apenas cumpre sua missão de educar com ética e compromisso. A violência simbólica que ela sofreu é a mesma que ameaça todos nós que acreditamos na escola como espaço de liberdade, conhecimento e humanidade.
Traste não é uma professora ensinando. Traste é o debate raso, o ódio gratuito e a forma covarde com que a extrema-direita tenta calar uma professora.