Em Maceió, a extrema-direita encontrou um alvo fácil para justificar o caos urbano e a ausência de políticas públicas: o flanelinha. Este sujeito, quase sempre um homem negro, periférico e vulnerável, que guarda carros em vias públicas para sobreviver, passou a ser tratado como o inimigo da sociedade. Essa cruzada não nasce de um debate sério sobre mobilidade ou segurança, menos ainda de um diálogo sobre combate à desigualdade social e política de emprego digno. É uma tática rasteira de criminalização da pobreza.
É verdade que a prática dos flanelinhas não é regulamentada e, em algumas situações, provoca constrangimentos. Há disputas por território, cobranças impositivas e abordagens inadequadas, por muitas vezes criminosas. Mas isso não surge do nada. É fruto da informalidade, da falta de emprego com salário digno, da vulnerabilidade social e, sobretudo, da omissão do poder público. O problema central não está no flanelinha, mas na ausência completa de políticas para organizar estacionamentos, garantir segurança em áreas públicas e oferecer alternativas de renda a quem vive à margem, os marginalizados.
Quem tenta sobreviver na informalidade precisa de regra, cadastro e mediação do poder público. Defendo três coisas bem objetivas: regulamentação da atividade com cadastro e capacitação, organização das vagas com política de estacionamento e canais rápidos de denúncia para coibir abusos.
Nesse cenário, a responsabilidade não pode ser jogada apenas sobre a Prefeitura. É verdade que o município dispõe da Guarda Municipal e tem atribuições ligadas à organização do espaço urbano, mas a questão dos flanelinhas não se reduz a um problema de ordem pública. Envolve também políticas de mobilidade, emprego, habitação e assistência social que o poder local nunca estruturou de forma consistente. Do outro lado, o Governo do Estado, responsável pelo policiamento ostensivo através da Polícia Militar e pela investigação criminal via Polícia Civil, tampouco tem enfrentado as causas estruturais da vulnerabilidade social que empurra milhares de pessoas para a informalidade. Essa omissão abre espaço para que vereadores como o delegado Thiago Prado (PP) transformem sua atuação em espetáculo punitivista, filmando trabalhadores, quebrando cones e caixotes e expondo cidadãos em redes sociais como se fossem criminosos perigosos.
O que se viu recentemente foi um verdadeiro show de horrores.
Thiago Prado, em ação conjunta com a Guarda Municipal e com apoio da DMTT, transformou a abordagem a flanelinhas em espetáculo midiático. As câmeras ligadas e os vídeos espalhados nas redes sociais deixam claro que o objetivo não era resolver um problema coletivo, mas lacrar para a internet. A cena mais emblemática foi a de um flanelinha, acuado, pedindo desculpas ao vereador. O gesto, carregado de constrangimento e submissão, revela a sanha de humilhar e expor pessoas já fragilizadas.
Questiona-se: os flanelinhas que foram abordados e foram vítimas de busca pessoal estavam em situação de flagrância para serem submetidos à busca pessoal, como previsto no art. 244 do Código de Processo Penal, ou a tão falada liberdade da extrema-direita é um direito restrito para alguns?
Surge então uma pergunta óbvia: tem um vereador competência para conduzir operações de repressão nas ruas enquanto policiamento ostensivo, papel este precípuo da Polícia Militar, nos termos do art. 144 da Constituição Federal? Não. O papel de um parlamentar é legislar e fiscalizar, não posar de xerife diante das câmeras, ao lado de órgãos municipais, em busca de curtidas e aplausos. Ao assumir esse papel, Thiago Prado distorce as funções do mandato e ergue palanque sobre a miséria alheia.
O que causa mais estranheza é que a Polícia Civil do Estado de Alagoas, através da sua Corregedoria expediu a Recomendação 001/2024-GCGPJ/PCAL, de 19 de janeiro de 2024, onde diz:
"RESOLVE RECOMENDAR: 1. Que os servidores Policiais Civis do Estado de Alagoas se abstenham de exibir, compartilhar ou editar imagens, áudios, textos, mensagens ou links de investigações e operações policiais em perfis pessoais das redes sociais, bem como de exibirem armas, equipamentos, fardamentos e táticas utilizadas pela corporação, ou outras exibições que exponham o interior das instalações fisicas ou viaturas do órgão de Segurança Pública; 2. Que as postagens já expostas e ainda presentes nas redes sociais, em perfis pessoais, sejam deletadas."
A pergunta que fica é: o vereador, por ser delegado, não estaria violando uma recomendação interna da própria instituição a que pertence? A Corregedoria da Polícia Civil tem conhecimento disso? Há alguma apuração em curso?
Essa performance punitiva do vereador é uma farsa requentada. É a mesma receita de "Tolerância Zero" e da "Teoria das Janelas Quebradas" que Rudy Giuliani celebrizou em Nova Iorque, nos anos 90. O que a Criminologia Crítica, em trabalhos como A Sociedade Excludente de Jock Young, já provou, no entanto, é que esses discursos são fantasmas: uma elaborada construção pseudojurídica para legitimar a perseguição aos mais vulneráveis.
Em Alagoas, a prática também é ultrapassada. Em 1997, após a renúncia de Suruagy, Manoel Gomes de Barros assumiu um estado falido e propôs governá-lo com mão de ferro, desviando o foco dos problemas sociais e econômicos para uma suposta guerra contra o crime.
Esse tipo de prática não enfrenta o problema real. Apenas reforça preconceitos históricos. O flanelinha vira bode expiatório enquanto os gestores municipais e estaduais permanecem blindados. Não há cobrança por mais estacionamentos, não há transporte coletivo de qualidade, não há política integrada de segurança nos espaços públicos. O alvo é sempre o elo mais fraco: o trabalhador alagoano negro, pobre e invisibilizado.
É preciso reconhecer que atacar flanelinhas não é política pública. É cortina de fumaça. É jogar para a torcida. Criminalizar a sobrevivência significa negar a responsabilidade do Estado e da Prefeitura em garantir condições mínimas de dignidade. Enquanto isso, o carro dos mais ricos recebe vigilância, mas a vida dos mais pobres continua sem proteção.
Maceió não precisa de vereadores-lacradores que disputam audiência às custas da humilhação dos vulneráveis. Precisa de planejamento urbano, dignidade social e políticas públicas sérias. Até que isso aconteça, a cidade seguirá refém do absurdo em que perseguir flanelinhas rende mais voto do que enfrentar os verdadeiros problemas.
Este texto foi escrito em parceria com o advogado criminalista e companheiro de lutas Roberto Moura*. Reunimos nossas experiências no campo da história, da educação e do direito para denunciar a criminalização da pobreza em Maceió e analisar criticamente as ações recentes contra trabalhadores informais.
*Roberto Moura - Advogado Criminalista. Professor de Direito da Graduação da Faculdade Uninassau/Maceió e Faculdade Delmiro Gouveia - FDG. Professor da Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da UNIMA/Afya. Presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Tortura do Estado de Alagoas. Diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim. Membro da Comissão de Litigância Estratégica do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do brasil - CFOAB. Integrante do Grupo de Pesquisa Periferias, Afetos e Economia das Simbolizações (GruPPAES/UFAL) e Biopolítica e Processo Penal (UNIMA/Afya e UFAL).