Reza uma antiga lenda que a gente se acostuma a tudo. Até ao que é errado. Mas não é porque uma coisa errada atravessa décadas que o erro deixa de existir. Não. Nasceu errada, envelhece errada e assim vai ficando, como se o tempo pudesse acertar o que foi, é e sempre será errado. Mas não haverá conserto. Até que alguém, um grêmio ou um governo façam a coisa certa e avisem: “Alto lá, em nome da razão e da lógica!”. 

Este é o caso de um curso obrigatório numa autoescola para se obter a Carteira Nacional de Habilitação. Essa invenção, salvo engano, ocorreu na década de 1990. Tentei descobrir a data precisa e não consegui. Mas conheço gente que tirou CNH até o fim dos anos 80, sem que tivesse tido aulas nesses centros de formação de motoristas. 

Sem querer defender teses a partir de experiências pessoais, pai e tios foram taxistas por quase 40 anos. Craques ao volante que jamais passaram na porta de uma autoescola. Ninguém precisa dessas aulinhas de alto custo para aprender a dirigir. Este blogueiro também nunca entrou num local desses – e não cometi vexames sobre quatro rodas.

Lula acaba de autorizar o avanço de um projeto que põe fim a essa obrigação descabida. O Ministério dos Transportes lança nesta quinta-feira uma consulta pública para colher sugestões de um novo modelo. O ministro Renan Filho explica que o custo de tirar uma CNH hoje impede milhões de brasileiros de ter acesso a esse documento.

Na média, o interessado gasta entre 3 mil e 4 mil reais para tirar a CNH. É um escândalo. O novo modelo vai derrubar isso em até 80%. A autoescola continua para quem tiver grana. Mas o candidato a motorista poderá treinar com um instrutor autônomo, credenciado pelo Detran. Os testes teóricos e práticos vão continuar, é evidente.

Hoje, mais de vinte milhões de condutores estão nas ruas sem CNH. O barateamento tem potencial para reduzir drasticamente esse índice assustador. Como se nota, ter condições de obter o documento é uma questão de cidadania e de inclusão social. 

O ministro também cita um fator que não pode ser desprezado. Quando, numa família, só há dinheiro para bancar a autoescola de uma única pessoa, entre homem e mulher, o escolhido será o homem. Sim, é uma forma silenciosa de machismo e discriminação.

Um argumento furado contra a novidade é o de que isso aumentaria o número de acidentes. Falácia escancarada. Primeiro porque, reitero, o candidato terá de passar nas provas práticas e teóricas no Detran, do jeito que é hoje. Segundo: se tal argumento fosse verdadeiro, o trânsito no país seria um paraíso – e definitivamente não é. 

A ideia de tornar facultativo o curso em autoescola já transitou pelo Congresso em anos anteriores, mas ficou engarrafada, derrapou em controvérsias e capotou pela força de lobistas. Sim, autoescola é um negócio bilionário. A essa altura, a federação nacional e a associação brasileira do segmento já congestionam Brasília. Ficou claro isso?   

E para terminar sem dar cavalo de pau: os países com os melhores sistemas de trânsito não exigem autoescola dos aspirantes a motorista. Chega de conviver com o errado como se o erro fosse obra da natureza. Hora de acabar com essa baliza de loucura.