A inteligência artificial (IA) deixou de ser usada apenas como ferramenta de estudo ou trabalho e passa a ocupar um espaço cada vez mais íntimo na vida dos jovens, o de companhia. Em meio à solidão, muitos recorrem a essas tecnologias como confidente digital, buscando conselhos ou desabafando quando não há alguém por perto para ouvir.
Em Marechal Deodoro, na Região Metropolitana de Maceió, o estudante Gabriel*, de 20 anos, encontrou na IA um apoio inesperado. Sem condições financeiras para manter sessões de terapia, decidiu experimentar a tecnologia como forma de suporte emocional.
“A falta de dinheiro foi um dos motivos que me fez buscar ajuda da IA. As sessões de terapia conseguem ser caras para a renda que eu tenho, então optei por buscar ajuda e entendimento dos sentimentos que eu sinto através da inteligência artificial”, contou Gabriel.
A experiência trouxe algum alívio, mas também revelou limitações. Gabriel reconhece que as respostas da IA ajudaram a organizar pensamentos e enxergar novas perspectivas, mas não substituíram a sensação de ser ouvido por alguém de verdade. “Não vi nada de surpresa. Creio eu que, em muitas situações, a IA só vai descrever seu sentimento”, avaliou.
O relato do estudante reflete um movimento crescente no país. Segundo levantamento da agência Talk Inc., a partir de estimativa feita pelo UOL, mais de 12 milhões de brasileiros já utilizam chatbots e assistentes virtuais para lidar com questões emocionais, metade exclusivamente com o ChatGPT.
A pesquisa, feita com mil adultos de diferentes perfis sociais, acompanha uma tendência global. Um estudo publicado pela Harvard Business Review aponta que, em 2025, o principal uso da inteligência artificial será justamente como suporte emocional, superando funções como organização pessoal e busca por propósito de vida.
No Brasil, a adoção é ainda mais intensa. O país é o terceiro que mais acessa o ChatGPT no mundo, segundo a Similarweb, além de estar entre os maiores usuários de WhatsApp e redes sociais.
Especialista alerta que relação humana é insubstituível
Apesar de cada vez mais presentes, as plataformas de IA não substituem a relação humana essencial à psicoterapia, alerta o psicólogo Ricardo Campelo Auto, especialista em dependência químicas e digitais.
“A inteligência artificial já está inserida no cotidiano, integrada às tecnologias que utilizamos. Porém, a população ainda está em processo de assimilação e compreensão dos limites e possibilidades dessa ferramenta”, explica.
Para Auto, a IA pode simular diálogos e propor soluções, mas de forma genérica, sem perceber a subjetividade de cada pessoa. “A relação humana é insubstituível e não pode ser replicada. A psicoterapia acontece a partir do vínculo, da empatia e da capacidade de percepção da subjetividade de cada paciente, aspectos que nenhum algoritmo é capaz de alcançar”, reforça.
Ainda assim, o especialista reconhece que a inteligência artificial pode atuar como ferramenta auxiliar, ajudando a organizar pensamentos e oferecendo orientações gerais, mas nunca como substituta do processo terapêutico.

IA como ‘terapia’: atenção redobrada com crianças e adolescentes
O psicólogo alerta que os riscos são ainda maiores para crianças e adolescentes. A exposição precoce a ferramentas de IA sem supervisão pode gerar interpretações equivocadas e reforçar comportamentos de risco.
“Há vulnerabilidade diante do risco de interpretar de forma ingênua ou distorcida informações recebidas, o que pode gerar prejuízos emocionais e cognitivos. Por isso, a supervisão adulta é indispensável nesse processo”, afirma.
Pais e responsáveis têm papel fundamental nesse acompanhamento. Auto destaca que é preciso compreender os limites da tecnologia, utilizar aplicativos de controle parental e monitorar atividades em ambientes digitais, como jogos online, podendo até restringir o bate-papo quando necessário.
Embora as inteligências artificiais se adaptem ao usuário com base na interação, o especialista destaca que isso não garante que promovam saúde mental ou identifiquem sinais de risco, como ideação suicida ou automutilação. Pelo contrário, podem reforçar ideias inadequadas ou perigosas, evidenciando a necessidade da presença humana no cuidado emocional.
Dependência tecnológica e necessidade de regulamentação
O profissional reforça que estudos mostram que milhões de pessoas recorrem à IA para lidar com ansiedade, depressão e solidão. Para Ricardo, a linha entre uso saudável e patológico é tênue, exigindo monitoramento. Ele diferencia a dependência funcional, relacionada ao uso da tecnologia para atividades do dia a dia, da dependência disfuncional, que compromete a vida do usuário.
“Quando a dependência se torna disfuncional, observamos sintomas como redução na atenção e concentração, isolamento social, irritabilidade e apatia ao se desconectar, além do desenvolvimento de condições como a Nomofobia [medo ou ansiedade intensa de ficar sem celular, ou sem sinal de rede]”, detalha.
O especialista também destaca a necessidade de regulamentação clara e protocolos de segurança específicos.“É necessária a supervisão ética constante de profissionais e da sociedade sobre essas plataformas. O acesso a essas tecnologias é recente e a população ainda precisa ser informada, educada e protegida por regulamentações específicas”, finaliza.
*Nome fictício
**Estagiária sob supervisão da editoria
Foto de capa: Imagem criada com auxílio de inteligência artificial para ilustrar a reportagem