O golpe contra Dilma, a prisão de Lula, a ascensão do bolsonarismo e a escalada da extrema-direita instauraram no Brasil um estado de exceção político que ainda não terminou. Nesse ambiente, consolidou-se uma lógica perigosa: em nome de enfrentar o bolsonarismo, qualquer aliança é considerada válida, qualquer concessão é aceitável e qualquer silêncio é estratégico. O que antes seria motivo de ruptura passou a ser tratado como habilidade política.
Velhas oligarquias voltaram a ser parceiras preferenciais. A pauta programática foi comprimida até caber no bolso de quem sempre governou para poucos. Movimentos sociais e sindicatos adaptaram-se a esse pragmatismo, cedendo espaço à burocracia e ao cálculo eleitoral. Partidos que nasceram para confrontar a ordem existente agora se acomodam na gestão do que já está posto, como se o principal objetivo fosse não perder lugar à mesa.
A esquerda, porém, não nasceu para administrar o que existe. Ela se forjou a partir de princípios, métodos e de uma moral que não se negociam. Os lutadores ensinaram que não há política transformadora sem disciplina consciente, clareza de objetivos e coerência entre meios e fins. Advertiram que a capitulação disfarçada de tática é a morte lenta de qualquer projeto transformador. Quando a estratégia é trocada pela simples sobrevivência, o que se preserva não é a luta, mas apenas os cargos e privilégios isolados.
Nas décadas de 1960, 70 e 80, aprendemos em uma tradição de luta que começava pelas demandas imediatas como salário, moradia, transporte e saúde e as conectava aos desafios históricos da classe trabalhadora. Cada mobilização era construída para garantir conquistas no presente sem perder de vista o horizonte de transformação. Hoje, essa pedagogia foi substituída por um realismo estreito que confunde esperteza com inteligência e faz da tática o fim em si mesma.
O resultado é uma crise profunda. Sindicatos fazem acordos que desmobilizam a base. Movimentos trocam a rua pelo gabinete. Partidos aceitam composições eleitorais com inimigos históricos. Em muitos casos, a disputa deixou de ser para avançar sobre o capital e passou a ser para preservar o próprio aparato, como a sede do sindicato, a contribuição sindical, o acesso a um auditório, a verba pública eleitoral, o fundo partidário, a estrutura de uma fundação, as emendas parlamentares e as políticas públicas que sustentam um ou outro movimento. A luta para manter a máquina engessa a ação prática e transforma o instrumento no próprio fim.
Outro elemento que atravessa essa crise é a dependência do chamado lulopetismo. O Partido dos Trabalhadores (PT) mantém um controle político e simbólico sobre o conjunto da esquerda institucional e do campo progressista, atuando como centro gravitacional que determina, direta ou indiretamente, estratégias, alianças e limites. Essa força de atração influencia partidos aliados, movimentos sociais e sindicatos, impedindo o deslocamento e a formação de experiências políticas independentes capazes de disputar espaço com semelhante vigor e enraizamento. A hegemonia lulopetista se sustenta não apenas pela força eleitoral, mas também pelo controle dos fluxos de recursos, das negociações e da visibilidade política, criando um campo que orbita em torno de um núcleo centralizado.
Essa crise também se expressa na relação com lutas que ganharam força nas últimas décadas, como o movimento LGBTQIAPN+, o movimento negro, as pautas ambientais e o feminismo. Demandas legítimas e urgentes, mas que muitas vezes não são integradas a um projeto de transformação estrutural. Sem essa síntese, a esquerda corre o risco de tratá-las como fragmentos isolados incapazes de enfrentar o núcleo duro da exploração capitalista.
Há ainda um elemento que aprofunda o problema: a incapacidade de disputar o debate público com a mesma eficácia que o bolsonarismo e a extrema-direita. Esses setores dominam as redes sociais, grupos de WhatsApp e Telegram, o Instagram e o YouTube. Produzem vídeos, cortes e transmissões ao vivo com constância e impacto, criando pautas e mobilizando em torno delas. A esquerda segue dividida, usando uma régua política distorcida para separar em vez de unir e incapaz de incorporar as novas tecnologias de forma concreta e produtiva. É uma contradição gritante. O bolsonarismo utiliza o que há de mais moderno para defender o que há de mais atrasado, enquanto a esquerda, com uma pauta progressista, não consegue disputar, narrar e pautar a realidade com a mesma força.
Enfrentar o bolsonarismo é vital. Mas não haverá vitória real se, no processo, a esquerda renunciar à sua razão de existir. É preciso resgatar princípios, métodos e ética da esquerda tradicional não como um exercício de nostalgia, mas como uma bússola para o presente. Sem essa coerência, o que vier depois do bolsonarismo poderá ser apenas um conservadorismo reciclado, mais polido, mas igualmente comprometido com a manutenção das estruturas de exploração e opressão.
A luta não é para sobreviver no sistema. A luta é para superá-lo.