Em pleno 2025, enquanto Alagoas segue entre os estados com os piores índices de desigualdade e violência do país, o governo estadual decidiu apostar suas fichas não em políticas sociais ou educativas, mas em uma tecnologia de alto risco: o reconhecimento facial automatizado.
No Diário Oficial do Estado de Alagoas, edição de 21 de maio de 2025, consta o Processo Administrativo E:02100.0000005040/2024, de interesse da Secretaria de Estado da Segurança Pública, que trata da possível contratação da solução Clearview Professional. Embora ainda não haja contrato formalizado, a Procuradoria Geral do Estado já emitiu parecer favorável à contratação direta por inexigibilidade de licitação, com base na exclusividade da fornecedora e na singularidade técnica da tecnologia.
A Clearview AI é conhecida por manter um banco com bilhões de imagens coletadas sem consentimento nas redes sociais, sendo alvo de processos judiciais nos Estados Unidos e banida em diversos países da União Europeia. Sua atuação já foi denunciada por organizações como a Electronic Frontier Foundation e a Human Rights Watch, que a consideram uma ameaça direta à privacidade e aos direitos civis.
Caso essa contratação seja efetivada, o governo de Alagoas estará endossando a ideia de que todo cidadão pode ser permanentemente monitorado e que seu rosto, um dado biométrico sensível, pode ser captado e analisado sem conhecimento ou consentimento. Isso tudo ocorre sem qualquer regulamentação estadual sobre o uso de dados biométricos, sem debate público e sem consulta a conselhos de direitos humanos, universidades, institutos federais ou entidades da sociedade civil.
Não há previsão de comitê independente para auditoria do sistema. Não há garantias sobre o destino dos dados coletados. Não há protocolo público de exclusão de informações indevidas. Há apenas um parecer jurídico que, mesmo apontando a viabilidade jurídica, condiciona a contratação à adoção de salvaguardas que, até o momento, não foram amplamente divulgadas nem debatidas.
Os dados oficiais reforçam a gravidade da escolha. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, Alagoas registrou 1.210 homicídios em 2024, uma leve redução em relação ao ano anterior, mas ainda mantendo índices entre os mais altos do país. Em 2023, 5,7% das mortes violentas intencionais no estado foram provocadas por policiais, o que evidencia o uso desproporcional da força por parte das instituições de segurança.
O relatório também aponta que, em nível nacional, a maioria das vítimas de homicídio são negras (79%), com até 29 anos (48,5%), assassinadas por arma de fogo (73,8%) e em via pública (57,6%). O que se vê é um padrão de violência direcionado e uma atuação do Estado que recai de forma desproporcional sobre corpos jovens, pobres e negros.
A experiência de outros estados, como Sergipe, que firmou contrato com a Clearview, mostra que a promessa de eficiência esbarra em um risco imenso. Erros de identificação, criminalização de inocentes e violação sistemática da privacidade de milhares de pessoas têm sido recorrentes. Mais do que segurança, essa tecnologia tem servido como instrumento de repressão, sobretudo contra as populações negras e periféricas, que já são as mais vigiadas e violentadas pela estrutura policial brasileira.
O mais grave é que esse modelo vem sendo implementado com ares de modernização, como se tecnologia fosse sinônimo de justiça. Não é. Tecnologia sem regulação, sem ética e sem controle democrático é ferramenta de opressão.
Em vez de priorizar políticas públicas preventivas, investigação qualificada e fortalecimento de direitos, o Estado parece trilhar o caminho da vigilância e repressão automatizada. Não enfrenta as raízes da violência. Prefere administrá-la com câmeras e algoritmos.