Há um gesto que diz mais do que mil palavras: o de virar as costas. Quando alguém escolhe não permanecer onde a responsabilidade o colocou, essa ausência fala. E foi exatamente isso que se viu em Alagoas nos últimos anos. Um roteiro marcado por ausências estratégicas, decisões silenciosas e renúncias que moldaram o destino político do estado.
Em 2020, o vice-governador Luciano Barbosa (MDB) deixa o cargo. Faz isso para disputar a prefeitura de Arapiraca, segundo maior colégio eleitoral do estado. Em abril de 2022, é a vez do governador Renan Filho (MDB) abrir mão do mandato para buscar uma vaga no Senado da República. Em ambos os casos, a motivação não foi uma crise, nem qualquer impossibilidade, nem o dever, mas sim a continuidade de trajetórias pessoais. A lógica de que o projeto individual sobrevive ao coletivo, ainda que para isso seja preciso deixar o estado no meio do caminho.
A renúncia de Renan Filho ocorre em um cenário de vulnerabilidade explícita. Em 2022, Alagoas mantinha alguns dos piores indicadores sociais e econômicos do país. O estado registrava a segunda maior taxa de analfabetismo entre as unidades da federação, com 14,4% da população acima de 15 anos sem saber ler nem escrever, quase o dobro da média nacional. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) era de 0,684, colocando Alagoas na penúltima posição do ranking nacional. A desigualdade social também seguia elevada: o Índice de Gini era de aproximadamente 0,526, revelando forte concentração de renda. Em diversas regiões do interior, o acesso a direitos básicos como água encanada e saneamento era extremamente precário, com grande parte da população vivendo à margem da infraestrutura urbana.
Foi diante desse retrato, de problemas estruturais históricos ainda não enfrentados, que se deu a renúncia. Não para encarar de frente as demandas históricas do estado, mas para trocar o cargo de governador por uma vaga no Senado. Não para concluir um ciclo, mas para preservar o próprio caminho. Não para se responsabilizar por desafios persistentes, mas para seguir no roteiro de poder.
Com isso, Alagoas se viu sem governador e sem vice. O que a regra previa era simples: assumiria o comando do estado o presidente da Assembleia Legislativa, o deputado estadual Marcelo Victor (MDB). Mas ele não assumiu. Preferiu não ocupar o lugar que lhe cabia por sucessão. Não o fez por acaso. Estava em plena articulação para disputar mais um mandato como deputado estadual e, sobretudo, manter o controle absoluto da Assembleia Legislativa. Presidência, pautas, estrutura, nomeações. O poder, ali, valia mais do que o cargo de governador temporário.
Diante da recusa, coube ao presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas assumir interinamente o governo. Um momento atípico, em que a toga passa a gerir o Palácio até que os deputados estaduais, em eleição indireta, escolhessem quem governaria o estado até o fim daquele ciclo. E assim surgiu o nome de Paulo Dantas (MDB), então deputado estadual, escolhido para o mandato-tampão. Em outubro de 2022, ele se reelegeu governador nas urnas, com a máquina, a legenda e o tempo a seu favor.
Graciliano Ramos escreveu que “quem não pode dominar-se a si mesmo não pode dominar coisa alguma”. Em São Bernardo, Paulo Honório faz tudo para possuir, controlar e preservar sua posição. Mas sua obsessão pela manutenção do poder o afasta de tudo o que importava. A renúncia à convivência, à partilha, à escuta. Tudo em nome da sobrevivência. No fim, não restava nada além da própria engrenagem. Em Alagoas, não há romance, mas há repetição. A política toma a forma da posse, do comando e da estratégia, mesmo que isso custe vínculos, mandatos e estabilidade institucional.
Agora, em 2025, o anúncio já foi feito. O ex-governador Renan Filho, hoje ministro dos Transportes e senador da República, confirma que será novamente candidato ao governo do estado em 2026. Para isso, deixará o ministério e voltará a caminhar por Alagoas. É o mesmo que, em 2022, saiu faltando nove meses para concluir o mandato e abriu espaço para um arranjo de bastidores que ressignificou, por dentro, o exercício do poder estadual. Será sua terceira disputa pelo governo do estado.
O anúncio, no entanto, não vem isolado. Ele surge exatamente no momento em que se confirma, nos bastidores e nas entrelinhas, o desenho de um “acordão” que reúne forças antes divergentes, agora reunidas sob o mesmo arco. JHC (PL), Renan Calheiros (MDB), Arthur Lira (PP) e o próprio Renan Filho alinham expectativas e papéis, cada qual com sua função prevista no tabuleiro. A indicação de Marlúcia Caldas ao Superior Tribunal de Justiça serve como senha para essa engrenagem. Uma arquitetura onde Renan Filho seria governador, Arthur Lira e Renan Pai ocupariam as duas vagas do Senado em 2026, e JHC manteria-se como prefeito da capital, sem disputar, apenas indicando nomes em pontos-chave da composição.
Ainda assim, nos bastidores, o que se diz é que o desejo de Renan Filho não seria exatamente o de voltar a disputar. Havia, talvez, a intenção de permanecer onde está. Mas a engenharia política posta exigia a formalização do seu nome. Não como desejo, mas como necessidade. Uma peça que precisa se mover para não abrir espaço a outras forças. O gesto de se anunciar, neste caso, cumpre função estratégica. Fecha portas, evita tensões, preserva o desenho.
Os principais movimentos que definiram esse roteiro recente do estado orbitam, quase sempre, uma mesma legenda: o MDB. Renan Calheiros, Renan Filho, Marcelo Victor e Paulo Dantas seguem abrigados sob suas estruturas, ainda que em ritmos e posições distintas. Mas não estão sozinhos. A costura mais recente incorpora figuras de outros partidos. Arthur Lira e JHC, embora filiados a outras siglas, agora compartilham da mesma engrenagem, cada um com sua função definida no arranjo.
Há ainda um elemento que causa estranhamento. A aproximação entre Renan Filho e JHC jamais foi natural. Não é apenas recente. É artificial. Na madrugada seguinte à apuração das eleições de 2022, Renan Filho, já eleito senador, foi até o apartamento de JHC, onde proferiu palavras duras ao microfone. Chamou-o de “vigarista”, “oportunista”, “carreirista”, em discurso inflamado que ainda hoje ecoa no imaginário político alagoano. O contraste é gritante. Se Paulo Honório renunciava aos afetos, Renan Filho agora se obriga a eles. Mesmo que nunca tenham existido. Porque há momentos em que manter o poder exige criar alianças contra a própria história.
Renunciar não é apenas sair. Às vezes, é um método. E quando o gesto se repete, talvez não seja mais gesto. Talvez seja projeto.