Nos últimos dias, a febre dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos — foi um dos assuntos mais discutidos no país, despertando a atenção de especialistas em várias áreas, a exemplo de juristas e psicólogos, e também de políticos.
Enquanto para uns é apenas um hobby, para outros os bonecos são uma forma de lidar com traumas emocionais. No extremo, porém, há aqueles que começam a exigir, para os seus "filhos" reborn, direitos como acesso à saúde pública e até "guarda compartilhada" em caso de divórcio, o que acendeu o alerta da sociedade.
Partilha de bens
Em entrevista ao CadaMinuto, a advogada Karin Maria Montenegro Marques, estrategista em resolução de conflitos familiares e empresariais, conversou sobre questões jurídicas que já estão surgindo envolvendo os bonecos, a exemplo de pedidos de "guarda compartilhada', e outras que ainda podem surgir, como direito à herança.
Karin afirma que, do ponto de vista jurídico, não é cabível uma ação de guarda envolvendo um bebê reborn, pelo simples fato de ser um boneco, ou seja, uma coisa, um ser inanimado. Por mais que o ex-casal goste do boneco, ele é apenas um boneco, e, ao seu ver, o único pedido que poderia existir seria com quem o boneco ficaria, ou seja, a partilha de bens.
Para ela, esse tipo de pedido não deveria nem chegar ao Poder Judiciário, cabendo à advocacia esse primeiro filtro. Mas, em sendo proposta a ação, entende que há sim a ausência do interesse de agir ou interesse processual, conforme preceitua o artigo 485 do Código de Processo Civil: "No entanto, digamos que o processo não seja extinto por conter outros pedidos como o divórcio. Nesse caso, caberá ao juiz julgar, pois ele não pode se furtar de sua função e deverá fundamentar pela impossibilidade jurídica do pedido".
Karin observa que toda demanda na área do Direito das Famílias contém carga emocional. Mesmo nesses casos inusitados, há uma carga emocional elevada, lembrando que somos humanos, seres complexos com emoções.
A especialista destaca a importância de profissionais capacitados no ramo do Direito das Famílias, que compreendam as nuances dessa área específica e a complexidade dos casos, já que não se trata apenas de questões objetivas, mas de emoções que esbarram na subjetividade dos conflitos familiares.
"Tanto a advocacia quanto os demais aplicadores do direito precisam estar preparados para uma escuta diferenciada. Apesar da modificação legislativa de 2015, com a inclusão da mediação no processo civil, nem todos os tribunais estão capacitados para atender essas demandas com carga emocional. Muitas vezes, a sentença não atende às necessidades reais das pessoas envolvidas no conflito. A função do Poder Judiciário é verificar se os pedidos e as fundamentações apresentadas condizem com o direito e, a partir de seu convencimento, prolatar a sentença. Por vezes, a questão emocional não é considerada, sendo analisado o caso com base no que a lei determina", explicou.

Sem chancela do Judiciário
Em relação à possibilidade de um juiz propor um acordo de “posse alternada” ou “visitação” de um bebê reborn, Karin cita o artigo 696 do Código de Processo Civil, que fala na possibilidade de composição amigável, inclusive com várias sessões de mediação ou conciliação para viabilizar uma solução consensual. Ela entende que não há como estabelecer um direito de visita de um boneco, mas talvez uma copropriedade do bem, em que cada um utilizaria o objeto em um determinado momento — como, por exemplo, a copropriedade de um carro.
Ressalta ainda que, na prática, mesmo que a lei não estabeleça e a sentença determine a partilha de bens, se o ex-casal quiser realizar uma rotina como se fosse um “direito de convivência” com o boneco, por mais estranho que pareça, não há impeditivo para tal dinâmica, apenas não haverá chancela do Poder Judiciário.
Sobre a classificação jurídica do bebê reborn, Karin o define como bem móvel. No entanto, comenta que todos os bens materiais possuem uma carga sentimental embutida: "Toda vez que um casal adquire um patrimônio, está projetando sonhos comuns. Com a ruptura do relacionamento, surge a frustração daquilo que não foi, e o conflito deixa de ser apenas financeiro e passa a ser emocional, o que dificulta a partilha", pontua, acrescentando que deve-se avaliar se o boneco foi dado de presente ou adquirido por ambos. Se foi um presente, não entra na partilha; se comprado conjuntamente, sim.
Karin afirma que é possível incluir cláusulas contratuais ou acordos extrajudiciais sobre posse ou uso alternado de um bebê reborn com validade jurídica, desde que não sejam proibidos por lei. Ela exemplifica com leis que proíbem levar o boneco para atendimento no SUS, mas reforça que a autonomia das partes permite acordos sobre a copropriedade, nos moldes de um carro compartilhado, por exemplo.
Ela esclarece ainda que, segundo os artigos 1.798 e 1.799 do Código Civil, só pessoas físicas ou jurídicas são legitimadas a receber herança. Qualquer cláusula que destine herança a um bebê reborn seria nula. No entanto, o boneco pode ser o bem deixado como parte da herança para uma pessoa escolhida pelo testador.
A advogada compartilhou com a reportagem sua opinião sobre o uso do Judiciário em disputas dessa natureza. Para ela, a judicialização de casos envolvendo bebês reborn revela uma dor emocional que precisa ser acolhida e escutada, mais do que julgada. Pode ser necessária a intervenção de profissionais da psicologia ou psicoterapia, pois, em seu olhar, esses vínculos simbólicos podem indicar perdas, carências, disputas mal resolvidas ou uma tentativa de manter o vínculo entre o ex-casal.
Ela defende, por fim, que a advocacia exerce um papel fundamental na sociedade, não só ao defender direitos, mas ao evitar demandas desnecessárias no Judiciário. "Como primeiro ponto de escuta, o advogado deve estar preparado para ouvir, orientar com coerência e consciência, fomentando o diálogo, a escuta empática e a verdadeira pacificação — que nem sempre é alcançada por meio de uma sentença", finaliza.
Saúde mental
Segundo a psicóloga Valéria Figueiredo, docente do curso de Psicologia da Faculdade Estácio, do ponto de vista psicológico, o apego a esses bonecos pode ter várias camadas de significado. Uma delas está ligada ao instinto de cuidado. Ela falou sobre o assunto por meio da assessoria de Comunicação da unidade educacional.
“Para mulheres que não puderam ter filhos, vivenciaram perdas gestacionais ou estão lidando com a síndrome do ninho vazio, o bebê reborn pode funcionar como uma forma simbólica de expressão do maternar”, afirma, acrescentando que outro ponto relevante está relacionado ao luto.
"Em situações de perda, o boneco pode ser um objeto de transição, ajudando na elaboração do sofrimento. A semelhança com um bebê real oferece um foco para o afeto e a saudade, permitindo uma externalização do sentimento. No entanto, é necessário acompanhamento profissional nesses casos, para evitar que a fantasia substitua a realidade da perda e torne o luto mais difícil de ser elaborado.”, pondera.
De acordo com Valéria, a solidão também é uma motivação recorrente: “Mesmo inanimado, o boneco pode gerar rotina, conversas e uma sensação de pertencimento. Em certos contextos, ele também representa controle: o bebê reborn pode ser aquilo que eu desejo no momento — algo que posso controlar, diferente da imprevisibilidade das relações reais.”.
Pessoas com histórico de traumas ou com padrões de apego inseguros podem encontrar nos reborns uma forma de contato afetivo previsível e livre de riscos, contudo, o alerta: nem sempre a relação é saudável. “Quando o vínculo com o boneco substitui relações humanas significativas ou se torna uma fuga para não lidar com dores emocionais reais, é sinal de que pode haver sofrimento psíquico”, aponta Valéria, ressaltando que, nesses casos, o acompanhamento psicológico é imprescindível.
“Compreender as motivações por trás desse vínculo é essencial para que possamos olhar para essas experiências com empatia, mas também com responsabilidade clínica”, conclui a psicóloga.

Projeto de lei
O tema do momento também chegou ao Parlamento Alagoano. O deputado estadual Cabo Bebeto (PL) apresentou um projeto de lei na Assembleia Legislativa que proíbe o uso de serviços públicos essenciais para atender bonecas “reborn” e outros objetos inanimados. A proposta visa evitar que recursos públicos sejam destinados a situações consideradas absurdas, como atendimento médico a brinquedos.
Segundo o texto do PL, qualquer utilização de serviços públicos — como unidades de saúde — para o atendimento de objetos inanimados será proibida. O descumprimento da norma implicará multa equivalente a 10 vezes o valor do serviço prestado, cuja arrecadação será direcionada ao tratamento de pessoas com transtornos mentais.
Cabo Bebeto cita casos de supostos atendimentos de emergência a bonecas como exemplo de desperdício de recursos públicos e alerta para o risco que isso representa à população que necessita de atendimento real.
O parlamentar também menciona disputas judiciais envolvendo bonecas “reborn”, como pedidos de divisão de tutela em processos de separação e disputas em inventários. Para ele, esses casos configuram uma “esculhambação do Direito Civil e reforçam a necessidade de estabelecer limites legais".
