“Nunca imaginei a maré invadindo o bar. Mas invadiu e levou parte do nosso estabelecimento.” O relato de José Carlos, o Carlinhos, de 58 anos, resume a tensão dos moradores de Garça Torta, localizado no Litoral Norte de Maceió. No dia 20 de abril, a força do mar destruiu o muro do Bar do Seu Manoel, fundado há 50 anos por sua família. Além disso, outras edificações também foram afetadas.
A ausência de uma legislação atualizada, aliada a especulação imobiliária, que provoca o crescimento desordenado de empreendimentos na região, tem afetado diretamente a vida dos moradores, comerciantes e pequenos negócios, evidenciando o impacto do avanço do mar e da erosão costeira, que causam danos significativos nas propriedades à beira-mar.
Carlinhos é um deles, que junto da esposa Quitéria de Assis, de 55 anos, administra o bar há 25 anos — que, além de ponto comercial, também é a residência da família. Eles relataram que tudo ocorreu muito rápido, por volta de 16h30, em um horário após o funcionamento do estabelecimento naquele dia.
“A gente só ouviu o barulho. O último garçom que estava conosco foi fechar o portão, quando ele ouviu o barulho. Tínhamos duas palhoças, uma à esquerda e outra à direita, depois desse palhoção aqui na areia. Então, quando a maré bateu, arrastou o muro junto com toda essa palhoça. Foi um impacto muito forte que levou tudo”, relatou Quitéria.
Comunidade resiste ao avanço do mar e às pressões do mercado imobiliário
Com o apoio de um engenheiro e de um arquiteto, a família de Carlinhos decidiu recuar a estrutura do Bar do Seu Manoel, preservando seu estilo original — com cobertura de palha, piso de areia e um ambiente rústico. A mobilização em torno da reconstrução já reúne cerca de 200 pessoas em um grupo de WhatsApp, dispostas a colaborar na retomada do espaço.
Apesar da resistência, as pressões do mercado imobiliário continuam. “A gente já recebeu várias propostas de empresas para vender o terreno”, conta Carlinhos.
Ele critica a desconexão entre os grandes projetos urbanos e as necessidades reais da comunidade. “Vieram, pintaram a rua de preto, colocaram o saneamento básico debaixo do asfalto. A gente nunca vai usar isso, né? Vai usar quando? Como a gente vai puxar daqui para Guaxuma?”, questiona.
O terreno onde está o bar pertence à família há mais de cem anos — passou da avó para a mãe, e hoje é Carlinhos quem mantém viva essa herança. Quitéria, sua esposa, relata viver dias de apreensão diante do avanço do mar.
“Moramos nesse bar. Se a maré continuar avançando, para onde vamos? Aqui é o nosso sustento e também a nossa casa”, afirma. Segundo ela, é a primeira vez em muitos anos que o mar chega com tanta força, destruindo a frente do estabelecimento.
Sem respostas do poder público, a incerteza domina a rotina. Quitéria pede esclarecimentos sobre o que está acontecendo e quais medidas serão tomadas. Com medo de que a parte do imóvel também seja atingida, ela revela: “A gente tem passado noites em claro”.

Descontrole urbano acelera erosão em áreas costeiras
O avanço do mar em bairros como Garça Torta, Riacho Doce e Paripueira revela mais do que um fenômeno natural, escancara décadas de negligência do poder público, descontrole urbano e licenciamento ambiental permissivo. É o que aponta o arquiteto urbanista e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Dilson Ferreira.
Para o especialista, a ocupação irregular no litoral destruiu ecossistemas que protegiam a costa, como restingas, dunas e manguezais. “Esses ambientes funcionam como barreiras naturais e berçários da vida marinha. Quando são suprimidos por construções, o equilíbrio ecológico se rompe, e a erosão se intensifica”, explica.
Ferreira destaca que a dinâmica costeira não tolera desequilíbrios localizados. Um único empreendimento mal posicionado pode comprometer toda uma faixa litorânea. É o que vem ocorrendo no entorno do Bar do Seu Manoel, que, apesar de estar em área preservada e adaptada ao ambiente natural, sofre as consequências de construções irregulares próximas.
Mesmo quem segue as normas e respeita os limites legais — como o recuo mínimo de 33 metros a partir da linha de preamar da maior maré, mais uma faixa adicional de proteção entre 50 e 100 metros — também é afetado. “Ali nunca houve ocupação predatória. O bar sempre esteve em harmonia com a natureza. Mas a destruição das restingas ao redor desestabilizou a região”, afirma.
Leis existem, mas faltam fiscalização e vontade política
Desde a aprovação do Código de Edificações e Urbanismo de Maceió, em 2007 (Lei Municipal 5.593/07), o crescimento desordenado de prédios altos desconsidera a capacidade dos serviços urbanos existentes.
A situação se agrava com a defasagem do Plano Diretor, desatualizado desde 2015. Sem diretrizes claras e atualizadas, a especulação imobiliária encontrou terreno fértil para se expandir, inclusive em áreas ambientalmente sensíveis.
Enquanto o mar avança e ameaça construções tradicionais, edifícios de até 20 andares se erguem ao redor, alterando a paisagem e pressionando ainda mais a infraestrutura local.
Apesar de outras legislações rigorosas — como o Código Florestal, o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e a Resolução Conama nº 303/2002 — o problema, segundo Ferreira, não está na ausência de normas, mas na falta de aplicação efetiva.
“A proteção já está prevista em todos os níveis: municipal, estadual e federal. O que falta é fiscalização, seriedade e vontade política para fazer a lei ser cumprida”, denuncia.
O professor também critica a flexibilização de processos de licenciamento, muitas vezes aprovados com base em pareceres frágeis, que ignoram alertas técnicos e estudos científicos. Além disso, ele aponta o papel permissivo das autoridades locais no avanço da especulação imobiliária.
“Todos os empreendimentos têm licença. Nenhuma obra se ergue sem certidão de uso do solo e sem aprovação ambiental. Ou seja, essa expansão ocorre com o aval do poder público”, pontua.
Ferreira lembra que conselhos profissionais como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) têm papel técnico importante na fiscalização das obras. No entanto, esses órgãos enfrentam limitações estruturais.
“Hoje, não há equipe suficiente para fiscalizar de forma efetiva todos os empreendimentos. O volume de obras e a complexidade dos processos tornam a atuação dos conselhos insuficiente”, explica.
Diante desse cenário, o arquiteto defende maior transparência pública nos processos de licenciamento. “É fundamental que toda a base de dados dos projetos aprovados esteja acessível nos sites das prefeituras e órgãos ambientais. A sociedade precisa ter acesso fácil a plantas, licenças e estudos de impacto ambiental”, afirma.
Para ele, essa abertura permitiria uma fiscalização mais ampla, envolvendo conselhos, pesquisadores e também a população local. “A transparência é parte essencial da prevenção. Quando a informação circula, há mais chance de corrigir os erros antes que se tornem degradação ambiental”, acrescenta.
Prejuízo coletivo e impactos irreversíveis
Os danos já são visíveis e afetam até mesmo quem construiu legalmente. Ferreira observa que os prejuízos são amplos: “Todos perdem. Perdem imóveis, perde a infraestrutura urbana — como redes de água, esgoto e vias —, perde a prefeitura, que vê equipamentos públicos sendo destruídos”.
Além disso, o acúmulo de entulhos, concreto e ferragens levados pela maré aumenta a poluição e representa risco para animais marinhos e para quem frequenta as praias.
Os impactos econômicos também são significativos. Moradores que respeitaram as normas ambientais acabam afetados por ações irregulares de terceiros. “Algumas ruas são engolidas pelas marés, áreas verdes desaparecem, e as perdas patrimoniais e ambientais se tornam irreparáveis”, lamenta.
Esse cenário já se repete em diversos pontos do litoral alagoano, como Barra Nova, Piaçabuçu, São Miguel dos Milagres e Paripueira. Nesses locais, o poder público é frequentemente obrigado a executar obras emergenciais de contenção marítima, com custos elevados.
“Hoje, construir um quilômetro de proteção, como as realizadas na Ponta Verde e Jatiúca, custa, em média, 20 milhões de reais”, destaca Ferreira.
No final, é a população que arca com os prejuízos — seja pela perda de bens públicos, pelos danos ambientais ou pelo desaparecimento de espécies costeiras. Como resume o especialista: “São perdas sociais, econômicas, urbanas e ecológicas que comprometem toda a região e colocam em risco as gerações futuras”.
MP cobra suspensão de licenças e revisão do Plano Diretor
O avanço da especulação imobiliária em Maceió, especialmente no Litoral Norte, ocorre com base em uma legislação considerada ultrapassada pelo Ministério Público de Alagoas (MPAL).
Segundo o promotor Jorge Dória, do Núcleo de Defesa do Meio Ambiente do MPAL, a principal causa da fragilidade nas normas urbanísticas da capital é o atraso de quase duas décadas na atualização do Plano Diretor do município.
“Esse Plano Diretor é de 2005. Em 2010, ele deveria ter sido atualizado. Como isso não aconteceu, eu defendo que essa lei pode até ter perdido a eficácia”, destacou o promotor.
Jorge Dória explica que, devido a essa defasagem, o Ministério Público já ingressou com uma ação judicial e instaurou um inquérito civil para cobrar a atualização do plano. Recentemente, o MP emitiu uma recomendação ao município pedindo a suspensão das licenças urbanísticas na região entre Guaxuma e Garça Torta — área classificada como sensível e carente de proteção específica.
Ele também ressalta que muitas construções hoje são autorizadas sem exigências fundamentais, como o estudo de impacto de vizinhança, ferindo princípios da ordem jurídica moderna.
“Essa questão da especulação imobiliária, o avanço dos empreendimentos, está se aproveitando de uma legislação que hoje é precária — mas ainda assim é a lei que regula. Então, a luta é justamente de atualizar essa legislação, para que seja possível impedir a concessão de licenças que acabam permitindo todos esses impactos no meio ambiente, no urbanismo e na paisagem”, explica Dória.
O promotor também destacou a dificuldade de atuação do Ministério Público em casos que envolvem áreas de marinha ou diretamente afetadas pelo avanço do mar, já que essas situações são de competência do Ministério Público Federal por se tratarem de bens da União. No entanto, ressaltou que, no que diz respeito ao uso e ocupação do solo urbano, o MP estadual segue atento e atuante para impedir novos retrocessos.
Outro lado
Procurada pelo CadaMinuto, a Prefeitura de Maceió informou que a Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seminfra) está realizando estudos técnicos voltados para diferentes trechos da orla da capital, incluindo áreas mais afetadas pela erosão costeira. “Os estudos buscam identificar a melhor solução de contenção marítima para cada ponto específico”, afirmou a pasta.
Embora obras já tenham sido realizadas em regiões como Ponta Verde e Jatiúca, ainda não há confirmação de projeto em execução para a Garça Torta, onde imóveis e estabelecimentos vêm sendo diretamente impactados pelo avanço do mar.
Sobre o novo Plano Diretor da cidade, a gestão municipal explicou que o documento — elaborado pela equipe técnica do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Maceió (Iplan) — encontra-se na fase final no Executivo.
“A equipe técnica finaliza os ajustes na minuta do texto, que será encaminhado para a Câmara de Vereadores. A expectativa é que o projeto seja enviado ainda no primeiro semestre”, diz a nota.
Em relação aos impactos ambientais provocados pela especulação imobiliária no Litoral Norte, a Prefeitura declarou que tem atuado com responsabilidade no planejamento urbano.
“O município tem atuado com responsabilidade nas questões de planejamento urbano, buscando soluções que conciliam a urbanização com a preservação das comunidades tradicionais e recursos naturais. A proposta do Novo Plano Diretor foi pensada a partir da participação popular ampla e um zoneamento que respeite a geomorfologia do território, de modo a preservar áreas de importância ambiental e paisagística”, informou a Prefeitura em nota.
Já o Governo de Alagoas informou por meio do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL), afirma que o órgão atua na recuperação da restinga por meio do projeto Salsa Viva, com ações já realizadas em áreas como Jacarecica e Cruz das Almas.
“Em Garça Torta e Riacho Doce, onde há construções antigas sobre a restinga, o órgão realiza monitoramento e ações de conscientização. O IMA também oferece apoio técnico à recuperação dessas áreas, em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), responsáveis por áreas da União”, destaca a pasta em nota.
Questionado se a ocupação desordenada de empreendimentos imobiliários no Litoral Norte de Maceió está sendo fiscalizada pelo órgão, o IMA afirma que, na moairia dos casos, o licenciamento dentro do território de Maceió é de responsabilidade da gestão municipal.
“Ao Estado compete o licenciamento apenas de empreendimentos de grande porte, que exigem a elaboração de EIA/RIMA (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental), como resorts ou projetos com maior impacto ambiental. Já construções residenciais e edifícios seguem o rito previsto no Plano Diretor, sob competência municipal”, finaliza.
*Foto de capa: Laura Gomes
** Estagiária sob supervisão da editoria