Em meio ao preconceito, a espiritualidade tem sido refúgio, resistência e reconstrução de identidade para pessoas LGBTQIAPN+ em Alagoas. Enquanto boa parte das instituições religiosas ainda impõe barreiras à diversidade sexual e de gênero, terreiros de matriz africana e igrejas cristãs progressistas vêm abrindo caminhos de acolhimento, cura e pertencimento.

No último dia 28 de junho, data em que se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, vozes como as do pai de santo Omó Oniyèl, do artista Thomas Noah e da assessora Tuane Alves revelam o impacto transformador da fé quando ela se alinha à liberdade, ao respeito e ao amor.

 

Axé como lugar de cura e reconhecimento

A trajetória de Thomas Noah Tysaj, homem trans de 29 anos e filho de santo em um terreiro de Candomblé, é marcada por um reencontro com o sagrado. Ele chegou à religião em um momento de profunda dor, guiado por um chamado espiritual que o levou até o terreiro onde permanece até hoje.

Ali, viveu momentos de acolhimento genuíno, como o abraço de um irmão de santo durante uma cerimônia — gesto simbólico de um pertencimento que ele buscava há anos. “Me sinto mais belo que antes — e isso não é só sobre beleza física. A luz que nos rodeia quando trabalhamos nossa espiritualidade muda nossa visão sobre nós mesmos e até sobre os outros”, afirma.

No Candomblé, Thomas encontrou um espaço onde pôde viver sua fé plenamente, sem abrir mão da própria identidade. A religião se tornou um território de cura, autoestima e liberdade.

 

Artista Thomas Noah Tysaj — Foto: Arquivo pessoal

 

Essa vivência encontra ressonância nas palavras de Omó Oniyèl, sacerdote do Ilê Egbé Vodun Aziri, em Rio Largo. Iniciado há 15 anos, ele acredita que os fundamentos do Candomblé nunca foram excludentes. 

Para ele, preconceitos como a homofobia e a transfobia não vêm da espiritualidade, mas dos resquícios do cristianismo colonial impostos durante a escravização. Ele próprio já enfrentou discriminação por ser um homem de Iemanjá.

“O que importa é o Ori — a cabeça, o centro da consciência e da ligação com o sagrado. A forma como a pessoa se identifica ou vive sua sexualidade é o mínimo quando olhamos para o Ori e deixamos de enxergar só o corpo”, afirma.

Na casa de axé que lidera, a maioria dos filhos e filhas de santo são pessoas LGBTQIAPN+, o que faz do terreiro um espaço politizado. Ainda assim, ele reconhece que há resistências dentro da própria tradição, principalmente entre lideranças mais antigas. Para Omó, o tempo e o diálogo são fundamentais para transformar essas disputas em escuta e empatia.

 

Pai de Santo Omó Oniyèl — Foto: Arquivo pessoal

 

Espiritualidade cristã com acolhimento

No bairro do Pinheiro, em Maceió — onde o afundamento do solo causado pela Braskem ainda marca a paisagem e a memória dos moradores —, a fé também se firma como forma de resistência. 

É ali que Tuane Alves, de 32 anos, assessora de planejamento e moradora do Prado, atua como uma das lideranças da Pastoral da Diversidade da Igreja Batista do Pinheiro.

Sua jornada com a fé começou na adolescência, em uma igreja neopentecostal. “Foi um espaço que me ensinou valores e me deu estrutura, mas que deixou de fazer sentido quando comecei a entender Deus para além da doutrina rígida que me era ensinada”, conta. 

Depois de atuar como missionária em outra igreja, afastou-se ao perceber que sua identidade e sua espiritualidade não poderiam mais ser vividas separadamente. “Quando fui entendendo o divino por mim mesma, percebi que precisava seguir outro caminho”, relembra.

 

Como funciona a Pastoral da Diversidade

A reconexão veio na Igreja Batista do Pinheiro, espaço reconhecido por seu posicionamento progressista e seu compromisso com os direitos humanos. Lá, Tuane ajudou a reconstruir a Pastoral da Diversidade — grupo formado por fiéis LGBTQIAPN+ e aliados que atuam dentro da igreja com um papel claro: promover acolhimento, formar consciência crítica e construir uma teologia inclusiva e afirmativa.

“A pastoral fortalece a pauta da diversidade dentro da igreja, promove debates, acolhe, representa e constrói um espaço onde reafirmamos que Deus não apenas aceita, mas celebra nossa existência”, explica.

O trabalho do grupo não é isolado. Embora exista como estrutura de apoio, o acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+ é responsabilidade de toda a igreja. “Não é algo separado. Caminhamos juntos como comunidade de fé. Se surgem demandas específicas, escutamos, dialogamos e respeitamos o tempo de cada pessoa”, diz Tuane.

 

Igreja Batista do Pinheiro — Foto: Arquivo Pessoal 

 

Espiritualidade como força de identidade e resistência

Para Tuane, a Pastoral da Diversidade foi essencial para reconstruir sua autoestima e reconectar-se com sua espiritualidade. “Por muito tempo, acreditei que precisava escolher entre minha orientação sexual e minha fé. Me ensinaram que Deus abominava quem eu era. Hoje, sei que posso viver a plenitude da fé sendo quem sou”, afirma.

A liderança acredita que a fé tem poder de fortalecer identidades dissidentes, especialmente em tempos de avanço do conservadorismo religioso. “Saber que nossa vida é celebrada por Cristo fortalece nossa identidade. A fé nos lembra que temos pleno direito a existir, amar e crer — e não pela metade, mas por inteiro”, destaca.

Ela também vê o trabalho da pastoral como uma disputa simbólica. “É nosso papel ser contraponto, testemunho vivo de novas narrativas. Nossa fé deve caminhar com os que estão à margem — sejam LGBTQIAPN+, pretos, pobres ou periféricos.”

 

Entre o axé e o evangelho, o sagrado que acolhe

A jornada espiritual de Thomas, Omó Oniyèl e Tuane revela que há caminhos possíveis onde fé e identidade não se anulam, mas se alimentam mutuamente. Em terreiros e igrejas comprometidos com o acolhimento e a justiça social, a espiritualidade deixa de ser um instrumento de exclusão e se torna força de afirmação.

Na contramão do moralismo que ainda domina muitos púlpitos e terreiros, essas vivências mostram que o sagrado também pode ser um lugar de orgulho. Afinal, como afirma Tuane: “Sou testemunho de que é possível viver a plenitude da fé sendo quem se é.”

 

*Estagiária sob supervisão da editoria