Graciliano Ramos não era poeta

05/05/2024 15:27 - Blog do Celio Gomes
Por redação
Image

Obras-primas da literatura saíram quando seus autores já eram mortos. Um Artista da Fome e O Processo, de Kafka, estão na lista. Memórias do Cárcere, um patrimônio cultural de Graciliano Ramos, é outro exemplo. O chileno Roberto Bolaño, morto em 2003 aos 50 anos, é um desses casos raríssimos que, de tempos em tempos, tiram do lugar as certezas sobre a literatura. É o que ele faz com 2666, um romance póstumo.

Citei esses casos de memória. Em todas as épocas, há incontáveis nomes de autores finados com obras novas na praça. Para citar outro nome essencial no panorama brasileiro, lembro de Paulo Leminski. Foram alguns títulos lançados nos anos seguintes de seu falecimento. Na década de 90 saíram La vie en Close e O Ex-Estranho, volumes de poemas recolhidos por sua família na bagunça prática e existencial do grande poeta.

A breve lista citada acima mostra livros que honram o talento de quem os escreveu. A obra póstuma reafirma as qualidades do conjunto publicado em vida. Mas nem sempre é assim. A poesia de Carlos Drummond de Andrade não saiu do lugar com os títulos que vieram após sua morte. Em O Amor Natural e Farewell, aliás, o que se vê é a reiteração do poeta fora de forma. Décadas atrás ele havia se rendido ao sentimentalismo. 

Pois agora, nosso Graciliano, que legou ao mundo um conjunto assustador de textos geniais, reaparece com umas linhas duvidosas. Parece heresia, eu sei, mas a culpa não é minha – e muito menos do autor que fez literatura até com a burocracia oficial. A obra completa do ex-prefeito de Palmeira dos Índios entrou em domínio público após se completarem 70 anos de sua morte. A novidade está valendo desde janeiro deste ano.

Aproveitando a janela para grandes negócios, várias editoras começam a relançar os livros do autor. Depois de décadas, a Record perdeu a exclusividade sobre o conjunto. Ocorre que a editora Todavia desencavou um inédito e, com o selo Baião, jogou no mercado. Trata-se de Os Filhos da Coruja, um único poema de 64 versos, em três páginas, inspirado nas fábulas de La Fontaine. Ilustrações completam o volume. 

O escritor Ricardo Ramos Filho, neto do autor de São Bernardo, diz que o avô, antes de morrer, deixou claro quais os textos que nunca deveriam ser publicados. Alguns assinados com pseudônimos estavam vetados. E o aviso que não permite hesitações: “Pelo amor de Deus, poesia, nunca. Foi tudo uma desgraça”. O veredito do autor, segundo o neto, foi ignorado à risca. “Uma sacanagem enorme”, diz Ricardo.

Não é que seja um texto medíocre. Mas, de fato, Os Filhos da Coruja não está, nem de longe, à altura da catedral em prosa deixada por Graciliano. A revolução que ele representa no romance, nos contos e no memorialismo é fenômeno único. Seu poema agora publicado parece fruto de autor comum, apegado a uma visão tradicional da poesia. O interesse se esgota na curiosidade arqueológica. O Velho Graça não era poeta.

Tudo bem. Nada que afete o prestígio desse monstro que saiu de Alagoas para a eternidade. Para mim, o maior de todos na literatura brasileira. Mas isso é outro debate.

Comentários

Os comentários são de inteira responsabilidade dos autores, não representando em qualquer instância a opinião do Cada Minuto ou de seus colaboradores. Para maiores informações, leia nossa política de privacidade.

Carregando..