Era uma vez a rebeldia

13/04/2024 00:17 - Blog do Celio Gomes
Por redação
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O alagoano Cacá Diegues gosta de contar uma fábula sobre ele mesmo e a turma de cineastas de sua geração: “Nós queríamos mudar o cinema, o Brasil e o mundo”. O narcisismo delirante é uma referência aos criadores do Cinema Novo, movimento que pregava a revolução total pela arte no começo dos anos 1960. A trajetória do artista, porém, atesta que, ainda cedo, todo aquele idealismo virou fumaça.

Assim como incontáveis companheiros de jornada, Diegues largou a rebeldia pelas esquinas e trocou de figurino. Com refinada naturalidade, acomodou-se nos salões e convescotes do que antigamente se chamava de status quo. O fardão da Academia Brasileira de Letras, que vestiu em 2019 (foto), representa à perfeição o triunfo da ordem sobre a fantasia do guerrilheiro cultural.

Na ABL, Diegues assumiu a cadeira até então ocupada por Nelson Pereira dos Santos, outro revolucionário do Cinema Novo. Fico aqui pensando no que diria Glauber Rocha sobre o perturbador destino de seus camaradas. Não discuto o mérito dos integrantes da academia. Ocorre que o tumulto de uma alma subversiva não se dobra aos ornamentos de palácios – nem à opacidade reluzente de medalhas e fardões.

Gilberto Gil, o trovador de refavelas, também se deixou levar pelos encantos da “alta cultura” e sucumbiu aos parques e domingos da senhora vaidade. É mais um a referendar a norma culta da gramática que interdita a desordem e a fúria dos iconoclastas. Espanto ainda maior foi a posse do gênio Tom Zé na coadjuvante Academia Paulista de Letras. Um enigma que, por mais que se explique, é impossível assimilar.

No mesmo embalo das telas para a música, Caetano Veloso recebeu no ano passado o título de doutor honoris causa da Universidade de Salamanca, na Espanha. Muito sério na solenidade, vestiu a espalhafatosa indumentária e discursou no idioma dos que lhe homenagearam. Aquele rapaz sem lenço e sem documento, de atitudes debochadas e provocações, que insultava a caretice e o falso moralismo, ficou no passado.

Uma década atrás, o baiano odara que cantou “é proibido proibir” cometeu a infâmia de defender a censura à publicação de biografias não autorizadas. Chico Buarque estava com ele nessa presepada. Para piorar, o que movia os antigos libertários era o interesse financeiro. Dane-se a liberdade de expressão. E que assombro: falamos aqui da geração 60, aquela que veio ao mundo, dizem, para destruir todos os limites e mudar tudo. 

A lista de rebeldes sem rebeldia é interminável. Na juventude, todos eles (uns mais, outros menos) transitaram os perigos da contramão. Mas os tempos de coragem e inconformismo ficaram para trás, numa quimera destinada a almanaques de exóticas curiosidades. Na reta final da grande aventura, saboreiam o confortável banquete dos poderosos, acobertados de glória e mansidão.

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