Pinto da Madrugada – por que Alagoas desmoraliza conceito de “patrimônio cultural”

22/02/2019 15:45 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Em abril de 2013, uma receita de camarão do Bar das Ostras ganhou oficialmente o registro de patrimônio imaterial e cultural de Alagoas. A iniciativa nasceu no então governo de Teotonio Vilela Filho e foi sacramentada pelo Conselho Estadual de Cultura. Dois anos antes, o bloco carnavalesco Pinto da Madrugada já havia sido homenageado com a mesma distinção. Nos dois casos, a esfera pública contemplou interesses de grupos privados que vivem na órbita de qualquer governo.

O que eu penso é que Alagoas desmoralizou o conceito de “patrimônio cultural”. Nem o prato de camarão nem o bloco carnavalesco têm qualquer vínculo com a chamada cultura popular. São duas invenções de endinheirados que fizeram lobby por seus negócios junto ao setor público. A única serventia do registro concedido é turbinar os cofres de empresas que lucram com seus produtos.

No caso da culinária, foi reconhecido o valor simbólico de uma iguaria destinada à nossa gloriosa elite analfabeta, voraz e oportunista. O Bar das Ostras fez sucesso entre os poderosos que batiam ponto no restaurante exclusivo para ricaços. Exaltado por aqui, o afamado camarão ganhou fãs além de nossas divisas, atraindo celebridades à caça de holofotes e almoço grátis. O povo fica de fora.

No caso do bloco, vejo como tremenda presepada tratar isso como uma “tradição alagoana”. O Pinto é uma festa criada por um grupo de médicos e diretores da Santa Casa de Maceió. Sempre viveu à base de dinheiro público, ainda que seja uma fonte de grana para seus donos. Além do comércio de camisas pra quem deseja estar na folia da avenida, vende-se de tudo com a marca do bloco.

Desde 1999, primeiro ano em que o Pinto foi às ruas nas prévias carnavalescas da capital, Estado e prefeitura de Maceió abrem as portas – e os cofres – para dar uma força à “manifestação cultural” tipicamente alagoana. A cada ano, os organizadores querem mais. Ao menor sinal de resistência do gestor, eles ameaçam cancelar a festa, alegando “falta de apoio”. É uma chantagem escancarada.

Em 2017, os donos do Pinto cancelaram o desfile justamente por não conseguirem o repasse que exigiam do governo estadual. No ano seguinte, com um novo comando na empresa, os bons tempos voltaram. Na verdade, a “nova” diretoria é formada por filhos dos médicos fundadores. Os garotos decidiram profissionalizar de vez a fonte de renda. Para isso, ampliaram as investidas no lobby.

A maior novidade para 2019 é a chegada da Rede Globo à avenida. Como vocês viram, o evento entrou pela primeira vez na programação da emissora – que vai transmitir ao vivo parte do desfile que ocorre neste sábado 23. Certamente o bloco fechou uma bela parceria com a TV Gazeta, a afiliada global no estado. E é claro que a verba pública continua como grande passista no frevo.

Cada um com suas mágicas para faturar dividendos. E cada um que decida por uma agremiação carnavalesca para dar pinotes no meio da rua. Não tenho nada a ver com as escolhas de ninguém. O problema é transformar uma empreitada particular numa espécie de monumento a ser reverenciado pelo povo. Isso é, por assim dizer, um tipo de fraude intelectual. Alagoas esculhamba até o imaterial.

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