“O deus Mercado exige o sangue das domésticas.” O sacrifício social da desregulamentação do mercado de trabalho.

06/08/2017 14:40 - Trabalho do Carvalho
Por Trabalho do Carvalho
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Mulheres e homens são os únicos animais na face da terra capazes de acreditar em abstrações que não existem na natureza. Democracia, pessoa jurídica, direitos humanos, demônios, ética inexistem para os outros animais que conosco dividem o planeta.

Essa característica do homo sapiens tem origem na tentativa de explicar fenômenos, causas e efeitos, que não se entendia. Se um raio caia em uma árvore e incendiava a moradia da tribo, nossos antepassados explicavam que o deus dos raios e trovões estava aborrecido. Hoje, evoluídos, milhares de anos depois, continuamos a relacionar conceitos com fenômenos que não compreendemos bem.

No Brasil de tempos tão sombrios para a defesa do bem-estar social, de ausência de representatividade política e de grave crise econômica, a coletividade histérica e alienada já elegeu o salvador de todas as mazelas: o deus Mercado.

Segundo os crentes dessa solução (sic), somente com a livre concorrência, ou seja, a ausência absoluta de toda e qualquer intervenção estatal, os agentes econômicos, por intermédio da concorrência perfeita, poderão fixar os preços eficientes, equilibrando o desejo dos vendedores e compradores. Toda a reforma trabalhista se fundamenta nesse conceito de “livre mercado”, no qual empregadores e trabalhadores poderão negociar (sic), sem qualquer intervenção dos órgãos de controles, o preço do trabalho e as condições em que o labor será realizado. Trata-se do “negociado” sobre o legislado.

Contudo, o deus Mercado, assim como o que controla raios e trovões, não necessariamente é justo, equânime e ético. Recentemente, em inspeções de condomínios e hotéis de luxo em São Paulo, a auditoria fiscal do trabalho encontrou condições que configuram “trabalho escravo doméstico”. Essa atuação, que merece elogios da sociedade, prova a necessidade da intervenção nas relações de trabalho pela autoridade estatal e, ainda, fortalece a ideia de que é imperiosa a existência de legislações protetivas da condição de dignidade daquele que vende sua mão de obra.

Batizada pela lógica do deus Mercado, e enfrentando limitação de oferta de “serviços domésticos” pelas paulistanas que não se sujeitaram a receber como remuneração a estadia no quartinho nos fundos, o escravizador flagrado pela fiscalização pagava a quantia de R$ 13 mil para “importar” uma doméstica das Filipinas, frete free on board, já incluso os custos para regularizar (sic) a situação da imigrante.

As mais de 16 horas de trabalho ininterruptos, ausência de descanso semanal e férias, alimentação escassa e barata (uma trabalhadora relatou que passava fome e chegou a se alimentar da comida do cachorro para quem cozinhava pedaços de carne), ou seja, os custos da transação, mais que compensavam o investimento inicial da importação para o escravizador. Glória ao deus Mercado!

Sim, a lógica da importação das domésticas é a mesma utilizada na produção das famosas camisas polo que no Brasil custam centenas de Reais, mas que em algum país asiático se remunera a mão de obra que a confeccionou em míseros centavos de dólares. A única diferença é que o sofrimento do trabalhador no segundo caso está a milhares de quilômetros daqui, diferentemente do primeiro caso, em que o desprezo pela dignidade do trabalhador é flagrantemente desnudado, exposto e jogado na face de uma sociedade que trata o trabalho como mero custo de produção.

O mesmo viés da redução de custos e degradação da sociedade ocorre com a utilização de mão de obra infantil por patrões que adotam (sic) crianças e adolescentes para o labor doméstico e cuidados de idosos e outros menores. Há casos, inclusive, que esses praticantes da livre negociação não se envergonham de ofertar o trabalho (sic) em classificados e anúncios em redes sociais.   

Todo controle dessas excrescências, praticadas em nome do deus Mercado, é urgente e necessário para demonstrar a exploração degradante da condição humana por aqueles que, diferentemente dos demais animais, preferem eleger sua abstração mais sombria, injusta e alijada de toda ética como solução para a atual crise brasileira.

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