O Brasil Não Quer Ser Africano

07/02/2010 17:03 - Raízes da África
Por Arísia Barros

O artigo abaixo nos foi solicitado, em 2006, pelo jornalista Ênio Lins, um grande parceiro. Publicado em 04 de novembro de 2006, no Caderno SABER da Gazeta de Alagoas, foi reproduzido em vários sites.
O artigo vem cumprindo o papel a que foi destinado de servir como ponto de referência interpretativa sobre a realidade racial nos espaços da escola do Brasil como em Alagoas.
O Brasil Não Quer Ser Africano vem servindo como fonte de pesquisa para inúmeros trabalhos acadêmicos, dentre eles o do professor de educação física de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Bruno Rodolfo Marques que em sua tese de Especialização em História da África e Diáspora Africana no Brasil, citou o referido artigo.
A tese do Bruno promove uma análise do racismo sob a ótica de um professor de educação física, intitulado: Paixão pela nossa cor o Mineiro pau e a Educação Física. Para entender melhor o trabalho do Bruno basta fazer a busca no Google. É muito bom partilhar conhecimentos
Como o texto do O Brasil Não Quer Ser Africano é enorme já o condensamos algumas vezes nesse blog com o formato de pequenos artigos e agora estamos postando em sua íntegra por conta do e-mail que recebemos do Yuri/Leonardo que transcrevo abaixo:
“Olá camarada Arísia,
Tudo bem?
Meu nome é Leonardo, sou diagramador de uma editora de livros de Campinas e militante do PSOL. Quando cursava a faculdade de jornalismo, tive a chance de ler um artigo seu chamado "O BRASIL NÃO QUER SER AFRICANO", maravilhoso e sensacional. Gostaria de postar na minha página do twitter para que outras pessoas possam ler esta obra prima, mas infelizmente não encontrei em nenhum lugar na internet. Você saberia me dizer se este texto está disponível em algum site?
Fico no aguardo e obrigado pela atenção.
Um grande abraço,
Yuri”

O Brasil Não Quer Ser Africano
Preconceitos e Incompreensões Dificultam a Educação Cidadã em Alagoas e no País.

O racismo no Brasil é uma patologia epidêmica que espia pelas frestas das fragilidades humanas e se aloja entre a razão e o bom senso.
Com o advento da Lei federal nº10.639 de 09 de janeiro de 2003- que cria a obrigatoriedade do estudo da África e dos negros e negras descendentes no currículo escolar, as escolas brasileiras têm pela frente a tarefa de preencher com possibilidades pedagógicas, o hiato presente na história que se conta e criar espaços estratégicos para o estudo das relações inter-raciais nesse universo.
A história do povo negro é seqüestrada diariamente no cotidiano das salas de aula, nas páginas dos livros didáticos e em cada esquina do conhecimento pedagógico. Recentemente, uma professora afirmou em sua aula de história que o “país” África era pária do mundo, não muito contente com a abrangência do substantivo mundo, ampliou para universo.
Meninos e meninas demonstraram uma má disfarçada inquietação. Não que ousassem contestar a absurda avaliação histórica da mestra, simplesmente não sabiam o significado de “pária”.
Reinventam-se fórmulas para a perpetuação da “teoria das raças”. Emudece a voz histórica e as nossas concepções eurocêntricas ganham a interpretação de história verdadeira. Vira-se a página!
Outra professora transformou em lenda a história de Zumbi dos Palmares. Uma meninazinha levantou o braço e perguntou? Tia, Zumbi não existiu? E a mestra enfática: não foi bem isso que quis dizer, mas disse, afetando de modo decisivo a percepção de crianças, ainda pequenas sobre Zumbi, o Rei de Palmares!
É a pedagogia caduca na busca dos semelhantes e da exclusão dos “diferentes”, ganhando sobrevida nas salas de aula, criando espaços estéreis feito páginas em branco, onde tudo pode ser imaginado, segundo a preferência do freguês/freguesa.
É nossa ignorância histórica limitando as muitas possibilidades para que meninos e meninas, mesmo não tendo uma linguagem comum, estabeleçam espaços de partilha ética e respeito ao outro/outra. É o racismo nosso de todo dia que põe a burca e europeíza nosso olhar.
O mito da miscigenação brasileira serve de pano de fundo para mascarar, normatizar e internalizar o racismo cotidiano. Qual a escola brasileira que se atreve a dizer que a Princesa Isabel foi uma lenda?
Explosão de contradições! É a busca dos valores do colonizador radicalizando a linguagem da escola, a estruturação das diretrizes do currículo escolar data do império, impondo um processo de acomodação secular, a eurocentricidade que cala a voz/cultura/expressões negras de milhares de meninos, meninas e jovens negras, brancas,indígenas.
Educação é movimento. É a construção de pontes mais transitáveis para a promoção do discurso do respeito às diferenças e a construção singular do sentido de grupo. Educar é contar histórias, escutar atentamente as diferentes construções históricas identitárias, abrindo o leque para que todas as vozes oriundas das muitas culturas sejam ouvidas.
Quando a educação fala linguagens diversas, as respostas surgem. A tia Eunice pede à sua turma a leitura do livro “O Sítio do Pica pau Amarelo”. Após a leitura, o menino do alto dos seus dez anos de loquacidade e sabedoria, expõe ponto de vista abalizado: Tia, o Sítio do Pica-pau é igual à história do Brasil? E a tia engessada na interpretação usual do livro centenário, inquire: que idéia é essa, menino?
E ele já transpondo suas pontes: No Sítio tia, como na História do Brasil, todos os negros são escravos! Xeque mate para quem aos 10 anos já percebe que estereótipos criados e consolidados da subalternidade do povo negro são naturalizados e aceitos nas muitas literaturas brasileiras.
O Brasil atravessa a rua quando encontra a África!

A concepção da escola invisibiliza a identidade negra

Uma das características básicas do currículo escolar é a flexibilidade, entretanto, quando a temática é a negra o verbo mais conjugado é o resistir. Resistir sistematicamente aos preconceitos adquiridos em um processo de má informação e da má formação sobre a África. Resistir ao processo da construção de espaços intelectuais e de poder para um povo que foi expatriado do seu continente e mantido a força em território brasileiro, como escravizado. O corpo organizacional da escola (gestão, professoras e professores) justifica a resistência com alegações diversas. Desde o receio de não ter informações para aprofundar o assunto, com desculpas pueris como “na escola não há alunos/alunas negras,portanto não tem porque trabalhar isso”.
Para introduzir o estudo sobre o continente africano é preciso trabalhar na desconstrução e eliminação de alguns elementos básicos das ideologias racistas brasileiras.
Quais os padrões usados por nós professoras e professores no quesito beleza? Internalizamos a consciência do homem branco/europeu/cabelos lisos e de preferência loiros. E, quando eu escolho padrões, eu qualifico. Eu seleciono. Eu diferencio. Eu discrimino. Eu excluo. A auto-construção negativa do adulto negro tem seu início na educação infantil. É preciso que façamos da educação um exercício salutar de tratamento das questões humanas fora dos padrões ideológicos.
Na escola não há espaço para anjos negros, nem bailarinas gordas ou princesas que tenham deficiência.
Na escola não há espaço para herói e heroínas negras. Na escola criança negra não faz parte do mundo do faz-de-conta porque no mundo do faz-de-conta, todas as princesas são brancas: Branca de Neve, Cinderela, etc, etc... A criança negra é cuspida da escola quando coleguinhas a estigmatizam como tiziu, cabelo de bombril, cabelo pixaim, ”Zumbi”, numa relação clara com sua descendência étnica. Na escola, Zumbi ainda não é rei. É apartheid estético-social. O mais grave é que o negro, com essa massificação imposta pelos valores eurocêntricos, nega a sua negritude, tem medo da própria imagem e conseqüentemente teme o direito de reivindicar sua própria história.
A escola não conta aquele conto que em 1597, o primeiro rei, Ganga Zumba, concebeu em uma serra de muitas palmeiras uma das primeiras sociedades econômica e socialmente viável e auto-sustentável: o Quilombo dos Palmares. O Brasil não conhece o Brasil!
Que motivações complexas são estas que nos faz discriminar, através de formas quase invisíveis do preconceito que se apresenta em nossas práticas cotidianas, na sutileza dos discursos? Porque é tão complexo criar uma identidade negra positiva e a vivência da negritude nos espaços pedagógicos?
Ao investir na aplicabilidade da Lei nº10.639/03, o organismo escolar promove o diálogo entre os diversos atores e atrizes do processo, paralelamente produz a argamassa necessária para a moldagem, para a construção coletiva e dialogada de uma pedagogia capaz de superar as limitantes idéias racistas, rompendo paradigmas.


Um menino Francisco e Zumbi dos Palmares

Os silêncios, vazios em sua essência histórica, e os fragmentos de memória da história de Alagoas, abrem lesões profundas e intrínsecas na contextualização da luta guerreira do povo negro - simbolizado na figura de um menino dado de presente a um padre. Um negro chamado Francisco - que antes de ser convertido aos padrões eurocêntricos da educação recebida, subverteu a idéia construída de negro como povo escravo, malemolente. Francisco que não herdou a mansidão do santo dos passarinhos. Francisco, o senhor dos quilombos. O Brasil demorou 300 anos para internalizar a questão do herói negro. 300 anos! A Rua do Brasil que dá de cara com a África é um beco sem saída! Francisco, o menino transformou-se em Zumbi, o guerreiro.
A palavra Zumbi, ou Zambi, vem do africano quimbando “nzumbi”, e significa, a
grosso modo, “duende”.
Dizem que a partir da sua vivência no mundo dos brancos, Zumbi apoderou-se da certeza de que o povo negro precisava se transformar em sujeito de sua própria história e não continuar objeto dos caprichos do senhor. Francisco, o Zumbi, contrapôs a história de que uma andorinha só não faz verão. Creio que uma andorinha só, pode sim, plantar a chuva e da terra molhada nascer o feno que chamará outros humanos famintos de sonhos e aí cabe a andorinha seduzi-los e seduzi-las para revoada.
Zumbi, o dos Palmares, concebeu no quilombo a incorporação de ideais humanitários, a legalização dos direitos humanos: somos diferentes sim, mas não desiguais! A Escola cala a voz de heróis e heroínas não hegemônicos. Ganga Zumba foi negro. Zumbi tinha orgulho da sua negritude. O povo negro não é hegemonia. A invisibilidade da história negra traz para a contemporaneidade a degola metafórica da luta palmarina e outras intervenções negras, quando as informações didáticas e sociais vêem carregadas de juízos de valor que estabelecem lugares de poder e a relação de submissão do negro escravizado com o branco/senhor/dono.
Ponto contra!
É urgente a qualificação dos espaços pedagógicos. A voz de milhares de profissionais da educação ainda se atrela e atropela as existências da multiculturalidade. Como se dará a inserção da temática negra na escola se os conceitos já vêem predefinidos e mapeados pela ótica envelhecida e empobrecida do unilateralismo dos saberes?
Ao colocar correntes no currículo, a escola nega e perpetua a África escravizada pelo sinuoso subterrâneo do racismo. Na verdade, o Brasil não quer ser africano - já dizia o grande Abdias Nascimento - o ícone brasileiro do movimento revolucionário negro. Arma-se um pano de fundo sociológico com relações de causa e efeitos nefastos nítidos e precisos na errônea reinterpretação da história e da desigualdade racial e social crônica: dominantes e dominados.
Ganga Zumba e Zumbi lideraram uma das maiores expressões de luta organizada no Brasil em resistência ao sistema colonial-escravagista E nós, seu povo descendente, fruto da noção cristalizada da hierarquia dominante, moramos em favelas, palafitas, somos o maior contingente de analfabetos.

 

O Brasil tem vergonha de ser negro

Em Alagoas, dados do IBGE informam que 47% das crianças analfabetas são negras e 27% pardas. Portanto, analfabetismo em Alagoas não é só um apartheid de classe, é principalmente um drama de cor. E essa cor é negra. A construção de conceitos estereotipados atrapalha o desempenho escolar da população negra, o que se reflete nos índices de analfabetismo, evasão e repetência.
Antes de sermos pessoas, somos diagnósticos críticos. Segundo relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) em cada grupo de dez jovens de 15 a 18 anos assassinados no Brasil, sete são negros. A raça também representa 70% na estimativa de 800 mil crianças brasileiras sem registro civil. “Entre os indicadores negativos, os negros só perdem para a população indígena na taxa de mortalidade infantil.” Os números, contidos no relatório “Estudo das Nações Unidas sobre a Violência contra Crianças”, mostram que o perfil das vítimas da violência vai muito além da faixa etária.
Porque o estado brasileiro- o último a conceder a alforria, o segundo país mais negro do mundo ensurdece a vozes negras dos negros?
Como conceder tratamento político igualitário a quem vive no olho do furacão das desigualdades sociais? O estado brasileiro ainda ignora Palmares dos pobres e dos negros. E, como somos maioria nos dois gráficos estatísticos,afirmamos que o
organismo estatal ignora o povo negro.
Segundo Aristóteles, a definição de sociedade sinonimiza com parceria, partilha de valores. Zumbi, o mais negro dos heróis brasileiros, foi unidade de luta e ao mesmo tempo transformou-se no símbolo de milhares de vozes anônimas gritando basta a exclusão.
Zumbi fez escola e hoje a lei nº10. 639/03 sinaliza para uma clara reflexão político-pedagógica do todo social.
Acreditamos que a aplicabilidade da lei em todas as escolas alagoanas - uma obrigatoriedade da Secretaria Executiva de Educação (orgão normatizador e coordenador das políticas educacionais no estado) abre janelas e portas para a um processo de humanização, socialização e singularização do currículo escolar. Abre portas para a construção da cultura de grupo e de pertencimento étnico.
E, aí muitas meninas e meninos negros, brancos, ciganos, indígenas Fransciscos, Josés, Wallaces, Isabel, Marias, se sentirão acolhidas, incluídas e visibilizadas na história de Alagoas, que na sua grande vertente, é uma história negra.
Cabe ao estado alagoano transformar a lei em políticas públicas, afinal estamos no mês da Consciência Negra, mês do herói Zumbi, mês de todo anônimo e anônima que luta por uma sociedade mais justa e igualitária.
Dagô Francico! Axé Zumbi!

arisia.barros@ig.com.br;negrasnoticias@yahoo.com.br


 

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