Escrevo aos brasileiros com a convicção de que nenhum destino está inscrito na natureza humana. Não há essência feminina que explique a violência que incide sobre as mulheres; há, sim, uma construção histórica que mantém a mulher confinada à condição de “Outro”, enquanto o homem se constitui como sujeito absoluto. Quando um país assiste ao aumento do feminicídio, não presencia apenas crimes isolados: observa o triunfo momentâneo de uma ordem social que ainda não se decidiu por libertar-se de seus mitos.

O feminicídio no Brasil não é uma aberração repentina, tampouco um tema lateral que se possa relegar ao rodapé das estatísticas. Ele é o espelho mais cruel de uma pedagogia cultural que atravessa séculos, moldando gestos cotidianos, hábitos silenciosos e uma educação que se protege de qualquer reflexão crítica sobre gênero. Uma sociedade que não ensina seus filhos a reconhecer a liberdade dos outros não deve surpreender-se quando eles a negam violentamente.

A violência extrema começa muito antes do ato. Nas palavras que relativizam a dor das mulheres, nos risos que justificam o controle sobre seus corpos, nas famílias que se apressam em apagar o escândalo para “preservar o nome”, nas escolas que evitam discutir autonomia, igualdade e ética da convivência. A cultura não é inocente; ela participa ativamente da fabricação do agressor e da submissão da vítima. E quando a cultura decide esconder, o Estado também se omite.

A falta de financiamento às políticas de proteção como casas-abrigo, centros de atendimento, formação de agentes públicos revela não apenas escassez orçamentária, mas um cálculo simbólico: decide-se, consciente ou inconscientemente, que a vida das mulheres pode esperar. Não há neutralidade nisso. A escolha política é sempre um gesto filosófico. Aquilo que uma sociedade financia é aquilo que ela admite como importante; aquilo que ela abandona à própria sorte é o que ela aceita como descartável.

Os discursos misóginos que hoje circulam com velocidade nas redes digitais não criam, por si só, a desigualdade. Eles apenas ampliam e legitimam aquilo que já estava inscrito no mundo — uma crença arcaica na superioridade masculina, uma nostalgia da autoridade patriarcal, um desconforto diante da mulher que ousa afirmar-se sujeito. Cada insulto lançado online é a reafirmação de uma velha pedagogia que sobreviveu às leis, mas não sobreviverá ao olhar crítico se este for, enfim, assumido.

Não basta inaugurar normas jurídicas ou celebrar avanços legislativos, embora eles sejam necessários. A experiência de outros países mostra que é a continuidade e não o anúncio que salva vidas. A Espanha, o Canadá, a Austrália compreenderam que combater o feminicídio exige mais do que réus identificados: exige investimento, vigilância permanente, políticas de prevenção, educação para a igualdade e a recusa cotidiana de todos os gestos que perpetuam a dominação. Uma revolução silenciosa, feita de atos persistentes.

O Brasil, no entanto, insiste em esconder a ferida. Protege tradições que já não protegem ninguém. Confunde autoridade com controle, honra com silêncio, amor com posse. Uma sociedade que se vê obrigada a inverter significados para manter a dominação em funcionamento revela que teme, acima de tudo, a liberdade da mulher. Pois quando uma mulher se torna sujeito — e não sombra — ela deixa de reforçar a ficção que sustenta o privilégio masculino.

A superação do feminicídio não virá de um único decreto, de uma campanha pontual ou de uma comoção efêmera. Ela virá quando os brasileiros aceitarem, com a maturidade de povos que enfrentaram seus próprios fantasmas, que a liberdade não pode ser seletiva. Enquanto existir uma mulher que amanhece temendo seu companheiro, o Brasil não será uma democracia plena; será apenas uma promessa adiada.

A responsabilidade é coletiva. O Estado deve financiar, proteger, punir, educar. Mas a sociedade deve ousar algo ainda mais difícil: olhar de frente aquilo que por tanto tempo preferiu ocultar. Reconhecer que a violência contra a mulher não é um acidente, mas o produto lógico de uma hierarquia que muitos ainda tratam como natural. E compreender, finalmente, que nenhuma cultura é destino. A cultura é obra humana e tudo o que é humano pode, e deve, ser transformado.

Porque a liberdade não é uma concessão; é uma construção. E o Brasil, se quiser ser fiel às suas mulheres, terá de aprender a construí-la todos os dias, com coragem, lucidez e responsabilidade. Nenhuma sociedade se torna justa enquanto metade dela vive sob ameaça. Nenhum país é verdadeiramente livre se suas mulheres não o são.

George Santoro