“Não parece real que ele nunca mais vai respirar, que ele está morto. O outro também. Tudo por causa de um gatilho”. Com alguma alteração ou outra, a depender da tradução, é o que diz um pistoleiro iniciante após fazer suas primeiras vítimas no Velho Oeste. Seu interlocutor é um assassino profissional que havia se aposentado, mas volta ao crime pela recompensa oferecida. A dupla parte para receber o pagamento.
Antes, porém, ao perceber o desespero do jovem fora da lei, o veterano, com dezenas de mortos nas costas, faz uma digressão. “Matar um homem é uma coisa terrível. Você tira não apenas tudo o que ele tem, mas tudo o que ele poderia ter”. A constatação resignada é de William Manny, personagem de Clint Eastwood em Os Imperdoáveis, lançado em 1992. A obra surpreendeu a crítica e levou prêmios pelo mundo.
Depois que Sergio Leone implodiu os filmes de western, com títulos como Por Um Punhado de Dólares, Três Homem em Conflito e o obrigatório Era Uma Vez no Oeste, parecia impossível que aquele universo pudesse render produto de valor. Ao subverter a linguagem, triturando clichês consagrados, o diretor italiano esgotara um estilo.
As paisagens vertiginosas, o cowboy frio e solitário, a brutalidade, a vingança e a lei do mais forte – tudo isso foi revirado por Leone. Na investida, ele parece recorrer à paródia para redimensionar aquelas histórias lendárias, numa mistura de farsa, tragédia, ilusão e melancolia. O cinema e o Velho Oeste nunca mais seriam os mesmos.
Mas, em 1992, Clint Eastwood apresenta ao mundo sua obra-prima irretocável. Além da direção, ele encarna o protagonista deste filme que é – agora sim – a última palavra sobre uma visão de mundo. Os dilemas morais da existência estão todos na tela, expostos com sobriedade, sem afetação ou maneirismos. O western, eterno, acaba aqui.
Lembrei desse monumento da arte ao descobrir que o deputado estadual Cabo Bebeto não sente nada quando pensa em quantas pessoas matou no exercício da profissão de militar. Na entrevista aos jornalistas Carlos Melo e Ricardo Mota, no CM Cast, Bebeto fala com desdém sobre o ato de eliminar a existência de uma pessoa. Nada demais.
“Eu nunca perdi o sono porque matei alguém. Nunca. Durmo tranquilamente com isso todos os dias”. Ele afirma que sabe quantos matou ao longo dos anos – “claro que eu sei” –, mas não revela o número. A omissão terá sido por algum constrangimento?
Ao afirmar que dorme em paz, mesmo com a memória de tantas mortes, o político parece falar de algo corriqueiro, uma banalidade. Com ironia, diz que há policiais que “não aguentam dar dois tiros, que já ficam nervosos”. Ele, não. Bebeto é sujeito homem, imune a sentimentalismos. Qual o problema em acabar com a vida de um ser humano?
Reparem: até um matador profissional, como os anti-heróis de Os Imperdoáveis, acusa o peso de um gesto perturbador como este. Mesmo por uma “causa justa”, mesmo na legítima defesa, exterminar o outro joga o assassino numa zona de inquietação inafastável. O fato de o alvo ser um “bandido” não alivia a angústia de quem mata.
A Literatura e a História abordam há séculos esse dilema demasiadamente humano. De heróis de guerra a cangaceiros, de carrascos a guerrilheiros, de mercenários a atiradores de elite, puxar o gatilho é uma escolha que muda tudo, dos dois lados, para sempre.
As vítimas dos pistoleiros do filme de Clint Eastwood cometeram uma barbaridade contra uma mulher. Tiveram o que mereciam. Eram imperdoáveis, afinal. Ainda assim, o veterano e o jovem principiante no ofício de matar sabem que isso não lhes garante o sono tranquilo. Sabem que de nada adianta fingir normalidade diante de uma anomalia.
Acabar com o presente e o futuro de alguém nunca será uma trivialidade. Pensar o contrário é reverenciar a selvageria, é animalesco, desumano. Refém das próprias ideias e de um estilo de vida, o senhor Bebeto jamais admitirá a fraquejada de um sono intranquilo. Que frescura é essa? Como revela na entrevista, com aquele jeitão entre apalermado e insultuoso, está condenado a viver sob o selo de um orgulhoso matador.