No município de São José, na Grande Florianópolis (SC), um condomínio adotou uma medida que ganhou repercussão nacional, ao criar uma norma inusitada proibindo os moradores de manterem relações sexuais após as 22h. Desde agosto, a notícia ganhou destaque na mídia nacional e nas redes sociais e a medida foi apelidada até de “toque de recolher do amor”.
Diante da polêmica, o CadaMinuto entrevistou o advogado Francisco Vasco, presidente da Comissão de Direito Condominial da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL). Na conversa, ele analisa a validade jurídica de medidas como essa, os limites da atuação de síndicos e assembleias, além de explicar o que a legislação já prevê sobre barulhos em condomínios.
O especialista também aponta os riscos de invasão à vida privada, comenta a possibilidade de aplicação de multas e dá orientações práticas para síndicos e moradores evitarem conflitos sem ferir direitos constitucionais.

O que o senhor achou da medida? Do ponto de vista constitucional, ela pode ser considerada uma violação do direito à intimidade e à vida privada dos moradores?
Particularmente, entendo que essa medida, tal como foi noticiada, extrapola os limites do razoável e não encontra respaldo jurídico. A Constituição Federal assegura a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), e o condomínio não pode adentrar em assuntos ligados ao íntimo das pessoas, como suas relações sexuais.
A função do condomínio é disciplinar a convivência coletiva e zelar pelo sossego, mas jamais restringir ou proibir atos de vida privada que, por sua natureza, são legítimos. Na prática, a tentativa de impor esse tipo de regra representa uma violação direta a direitos fundamentais e não teria validade perante o Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de medida desproporcional e inconstitucional.
Até onde vai a autoridade do síndico e da assembleia de condôminos em relação a barulhos vindos do interior dos apartamentos?
O síndico e a assembleia possuem autoridade para disciplinar o uso das unidades e das áreas comuns, sempre respeitando os limites impostos pela lei e pela Constituição.
O Código Civil (art. 1.336, IV) já prevê como dever do condômino não utilizar sua unidade de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos vizinhos. Isso significa que barulhos excessivos, como som alto, festas ou ruídos contínuos, podem ser objeto de advertências e multas.
Contudo, essa autoridade não é absoluta, uma vez que o síndico e a assembleia não podem fiscalizar ou controlar todos os aspectos da vida privada dos moradores. O que se admite é a atuação em casos de perturbação do sossego com repercussão real e comprovada, não a invasão de situações íntimas ou subjetivas.
É legal incluir, de forma explícita, menções a relações sexuais ou gemidos em um regimento interno de condomínio?
Sim, é possível que o regimento interno traga de forma explícita essa previsão, desde que não extrapole a razoabilidade na redação do texto. O regimento tem a função de disciplinar a convivência e pode, dentro desse contexto, elencar situações de ruídos que se enquadram como excessivos e perturbadores, incluindo gemidos ou barulhos decorrentes de relações sexuais.
No entanto, é preciso cautela na aplicação prática, pois o síndico, ao advertir ou multar, deve fundamentar a medida na ocorrência de barulho excessivo que prejudique a coletividade, sem expor os moradores ou detalhar aspectos íntimos da vida privada.
O Código Civil já traz regras sobre o sossego em condomínios. Essa medida vai além do que a lei prevê? Barulhos de atos íntimos podem ser enquadrados como perturbação do sossego na visão da legislação?
O Código Civil, em seu art. 1.336, inciso IV, determina que o condômino deve usar sua unidade de forma a não prejudicar o sossego, a salubridade e a segurança dos demais. A lei já oferece uma base para coibir ruídos que ultrapassem o razoável, sem especificar quais são eles, de forma que a medida adotada pelo condomínio o que a lei já prevê, uma vez que impõe medida que, de certa forma, constrange os moradores.
Cabe ao síndico, dentro daquilo que já está regulamentado por lei, analisar a intensidade, a frequência e o impacto do barulho na coletividade, e não o conteúdo em si.
De que forma um condomínio pode regular o silêncio noturno sem invadir a vida privada dos moradores? Quais as opções dos incomodados, nesses casos?
A melhor forma de regular o silêncio noturno é estabelecer regras objetivas em convenção ou regimento interno, prevendo horários de maior restrição a ruídos (normalmente das 22h às 7h), sem entrar no mérito da vida privada dos condôminos.
O texto deve se referir a “sons ou ruídos excessivos que prejudiquem o sossego coletivo”, sem detalhar atos íntimos ou particulares. Na prática, o condomínio pode aplicar advertências e multas quando houver reclamações fundamentadas, especialmente se existirem testemunhos de vizinhos ou registros que comprovem a perturbação. Essa atuação deve sempre observar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, evitando constrangimentos.
Aliás, vale destacar que os moradores incomodados também têm opções além da esfera condominial, seja acionando a Polícia Militar para registro de ocorrência de perturbação do sossego, seja ajuizando ação individual de obrigação de não fazer ou indenizatória em casos de danos comprovados.
A aplicação de multas nesse tipo de situação pode ser contestada judicialmente? Como um morador poderia se defender?
Sim. Toda multa aplicada em condomínio pode ser levada ao Judiciário para análise da legalidade e da proporcionalidade da penalidade. No caso de ruídos excessivos, o morador pode contestar alegando ausência de provas, inexistência de prejuízo efetivo à coletividade ou até mesmo abuso de poder por parte do síndico.
A defesa geralmente se concentra em demonstrar que o fato não ultrapassou os limites da normalidade ou que não houve comprovação suficiente do incômodo.
Também pode ser questionado se o procedimento para a aplicação da multa seguiu o que está previsto na convenção e no regimento interno.
Assim, embora o condomínio possua legitimidade para multar, o morador dispõe do direito de defesa e pode buscar no Judiciário a anulação da penalidade caso ela seja considerada abusiva, desproporcional ou carente de provas.
Qual o impacto de normas como essa na convivência entre vizinhos e no ambiente condominial?
Normas desse tipo costumam causar bastante controvérsia. De um lado, há moradores que entendem a necessidade de proteger o sossego coletivo e enxergam a regra como forma de evitar abusos. De outro, surgem críticas quanto ao risco de invasão da vida privada e de constrangimentos desnecessários.
O impacto imediato pode ser o aumento das discussões e da judicialização, já que nem todos aceitam com naturalidade esse nível de detalhamento no regimento interno. Isso pode acirrar conflitos entre vizinhos e até fragilizar a autoridade do síndico, caso a norma seja vista como exagerada ou abusiva.
Por outro lado, quando bem redigida e aplicada com cautela, a norma pode trazer segurança ao estabelecer parâmetros claros de convivência, evitando situações de barulho excessivo.
Que orientações o senhor daria a síndicos e moradores para evitar conflitos relacionados a barulhos sem ferir direitos individuais?
A principal orientação é o diálogo antes de aplicar advertências ou multas. Recomenda-se que o síndico busque conversar com os moradores envolvidos, explicando a situação e tentando uma solução amigável. Muitas vezes, o problema se resolve com informação e bom senso, sem necessidade de medidas formais.
Outra recomendação é que o regimento interno seja redigido de forma clara, objetiva e impessoal, tratando de “ruídos excessivos” de modo amplo, sem exposição desnecessária da intimidade dos moradores. Isso evita interpretações abusivas e dá segurança jurídica para a aplicação de penalidades.
Para os moradores, o ideal é manter o cuidado com o volume de sons, especialmente no período noturno, e respeitar as regras de convivência aprovadas pela coletividade.
Caso se sintam injustiçados por penalidades, devem buscar exercer o direito de defesa dentro do próprio condomínio e, em último caso, recorrer ao Judiciário.