Cada época apresenta coisas novas e atualiza coisas antigas, que até parecem novas coisas, mas são antigas mesmo. “Arte engajada” é do segundo grupo. Passou, mas está de volta com outros nomes, como se fosse a expressão de algo nascido nos dias atuais. Em outras palavras, um pensamento fora de moda repaginado no século 21. O termo que melhor sintetiza a nova onda de velhos modos é o controverso “identitarismo”.

Esse é um debate de incontáveis vertentes e confusões de todas as latitudes. Vou me deter em dois ou três aspectos sobre o tema incendiário – no campo específico das artes. Identitarismo é primo direto de “lugar de fala” – e os dois são da mesma família da arte engajada. Demorou, mas os dogmas e as vozes que decretavam o valor de uma obra finalmente deixaram de ser hegemônicos. Quem diria: mudamos para melhor.

A prova escancarada desse avanço mental é a proliferação de nomes e obras que durante séculos nunca tiveram a devida exposição. Um exemplo definitivo vem do cinema. A lista mais famosa dos melhores filmes de todos os tempos existe desde 1952 e é atualizada a cada dez anos. Cidadão Kane, de Orson Wells, foi primeiro lugar por quatro décadas, indo para segundo em 2012, superado por Alfred Hitchcock e o seu Um Corpo que Cai.

Mas em 2022, 60 anos após a primeira lista, a revista britânica elegeu um filme de uma mulher como o número um no ranking dos 100 melhores de todos os tempos. Trata-se de Jeanne Dielman, da cineasta belga Chantal Akerman. Que eu não conhecesse, tudo bem. Mas Ruy Castro e Sergio Augusto também confessaram a mesma ignorância. O que atesta o descalabro que é uma ideia de cânone sob a mente da macharada. Não mais.

Porque os filmes da diretora são mesmo a criação de uma artista singular. Assisti ao título citado e outros que nos mostram um cinema a demolir consensos de estilo e linguagem. Até sua morte em 2015, ela deixou mais de 40 trabalhos, entre curtas, médias e longas. Imagino que aquela vastidão de sentidos, sim, é coisa de mulher, daquela mulher. Mas, veja só, esse dado não restringe as coisas. Faz o contrário.

Não sei se fui claro. Chantal Akerman não reivindicava lugar de fala nem defendia engajamento nas causas feministas. No Brasil, como já escrevi aqui, a mulherada produz boa parte do melhor de nosso cinema atual. Sem esquecer as pioneiras, é um marco inédito. Um erro fatal seria pegar a via da militância panfletária, como alguns defendem.

Misturando as artes, e já rumo a um fecho nessas ideias soltas, algumas linhas sobre Itamar Vieira Junior (foto). O escritor baiano é um fenômeno de mercado, marketing, autopromoção e razoável literatura. Depois de seu Torto Arado, ele virou celebridade – e ocupou um espaço quase nunca destinado ao mundo da literatura. Basta dizer que foi reverenciado numa reportagem de bem meia hora no Fantástico. É um popstar. 

Itamar Vieira também é um cara problemático. Reagiu com grosseria às poucas ressalvas que recebeu a seu best-seller. Ou melhor, reagiu com desonestidade intelectual. Quem ousar apontar falhas em sua prosa militante, o rapaz denuncia o crime de racismo estrutural. É uma maneira tosca de calar o debate sobre o que interessa – a literatura em questão. Ocorre que o autor parece acreditar que inventou a arte de escrever no Brasil.

Menos. Em suas entrevistas, ele repisa clichês como se fossem revelações de um iluminado. A visão de literatura como “instrumento para um mundo melhor” e outras bobagens do gênero é inscrição jurássica. Quando imaginei num mesmo balaio identitarismo, lugar de fala e arte engajada, o nome de Itamar Vieira pulou, fulminante, do teclado para a tela em branco. E ainda tem uma dose de populismo autoritário.

Juntei ideias e conceitos com a ligeireza que só o jornalismo de opinião permite. Sei que cada uma dessas coisas (novas e antigas) são mais complexas do que minhas especulações insinuam. Mas num ponto talvez estejamos de acordo: a arte de pensar e o pensamento sobre arte não podem ser sequestrados por “especialistas”. Muito menos por autointitulados representantes deste ou daquele grupo, como faz Itamar Vieira.