O delito de exercício arbitrário das próprias razões, que engloba fazer justiça com as próprias mãos, teve um aumento de 8% no primeiro semestre deste ano, em relação ao mesmo período do ano passado, no Brasil, conforme dados recentes do Instituto de Segurança Pública (ISP). 

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL) registrou, até setembro deste ano, 55 casos de justiçamento no estado, que resultaram em 22 mortes. O número de óbitos é quase 70% maior que o registrado pela Ordem durante todo o ano de 2022, quando foram registrados 67 casos, dos quais 13 resultaram em morte.

Um caso recente, registrado no último dia 18 de dezembro, do entregador de Maceió, de 19 anos, que foi espancado e rendido, enquanto trabalhava, por pessoas que o acusavam de roubo no bairro da Jatiúca, é mais um caso de pessoas que se juntaram para fazer justiça com as próprias mãos, mesmo sem ter provas concretas da culpa da vítima.

Para esclarecer sobre o que é justiçamento e as consequências dele para as pessoas que o praticam, o CadaMinuto conversou com o advogado criminalista Marcelo Herval. Ele explica que as consequências legais para esse tipo de atividade criminosa são severas e que os envolvidos em justiçamento podem enfrentar acusações que variam de lesão corporal até homicídio.

Confira a entrevista:

Marcelo Herval / Foto: Arquivo pessoal

Qual a definição de justiçamento e por que a prática dele é considerada risco à ordem social?

O justiçamento pode ser compreendido como o ato de realizar justiça com as próprias mãos. Então, diante de uma situação no qual se verifica que um direito foi violado, o sujeito que teve esse direito violado, ou a própria sociedade como todo, busca resolver esse problema sem se socorrer dos órgãos oficiais do Estado. Todavia, essa prática gera um enorme risco na medida em que a nossa legislação estabelece um procedimento que deve ser rigorosamente observado, cumprido, respeitado, para que seja determinada a responsabilidade criminal de alguém na prática de algum ato lesivo. Então, uma vez que o justiçamento pressupõe você realizar justiça sem se socorrer realmente dos órgãos oficiais do Estado e, portanto, desrespeita-se.

Quais as consequências policiais e jurídicas para quem pratica justiça com as próprias mãos?

As pessoas que porventura venham a incorrer nessas práticas de justiçamento, de realizar justiça com as próprias mãos, podem, a depender do contexto, responder por exercício arbitrário das próprias razões, que é um crime tipificado no artigo 345 do Código Penal. Elas podem vir a responder, dependendo da gravidade dos resultados gerados com esse justiçamento. Elas podem vir a responder por lesão corporal e até por homicídio, caso a vítima venha a óbito. Tudo vai depender realmente do contexto concreto, de quais condutas foram praticadas por esses justiceiros e qual foi o resultado que decorreu dessas condutas praticadas por eles. É importante lembrar que essas pessoas, que venham a incorrer nesses atos de justiçamento, estão sujeitas a serem investigadas, processadas e punidas criminosamente. 

Há alguma diferença no indiciamento  e punição, caso a vítima do justiçamento venha a falecer em decorrência do ato?

Sim, há diferenças, tudo vai depender de qual foi a vontade dos justiceiros. Se era uma vontade de simplesmente restituir de forma legítima algo que foi, por exemplo, subtraído por outra pessoa, isso pode se enquadrar no crime de exercício arbitrário das próprias razões. Se esses justiceiros tinham vontade de lesionar, se enquadra em lesão corporal, que pode ir de uma lesão simples, lesão leve a até uma lesão gravíssima, dependendo exatamente do resultado que decorreu dessa conduta. Até chegar ao crime de homicídio, seja na modalidade tentada, quando o justiceiro, ele queria matar a pessoa, só que não conseguiu consumar por vontade, por motivos alheios à sua vontade, ou homicídio consumado, quando esse resultado de morte, ele é efetivamente produzido. Então, tudo vai depender da conduta, da vontade e do resultado que foi gerado a partir desse comportamento criminoso.

A que a Justiça atribui esse tipo de ação? Há alguma condição em que ela não ofereça consequência para quem prática?

A justiça atribui se há alguma condição em que ela não ofereça consequência para quem pratica. O fato de você incorrer no justiçamento por si só já constitui um crime. O que a legislação, ela autoriza apresentando uma causa de justificação seria efetivamente nos casos previstos em lei, né? Por exemplo, o exercício regular de um direito ou uma legítima defesa para repelir uma injusta agressão a direito seu ou de outra pessoa. Então, se por ventura alguém está roubando ou lesionando ou tentando matar outra pessoa e esse justiceiro intervém, apenas e tão somente para repelir, para afastar essa agressão que a outra pessoa estava fazendo. Praticando, não se excedendo, o importante dizer, então esse justiceiro não será responsabilizado uma vez que ele agiu nesse contexto citado a partir de uma causa de justificação chamada legítima defesa. A depender do caso concreto, é possível que o justiceiro seja isento de responsabilidade desde que ele se enquadre em alguma causa de justificação prevista em lei, que pode ser o exercício regulado de um direito. No caso, por exemplo, de um sujeito que dá voz de prisão a alguém que está praticando um crime e apenas contém essa pessoa, privando-a temporariamente de liberdade e até a chegada da polícia, isso é legítimo. É o exercício regulado de um direito, você está ali exercendo aquilo que o artigo 301 do Código de Processo Penal autoriza, que é dando voz de prisão a quem está praticando uma infração penal.

No caso de justiçamento praticado de maneira coletiva, como se dá a punição dos envolvidos? O fato de ter sido feita por diversas pessoas pode isentar os envolvidos da culpa?

Não, o fato de ser praticado por mais de uma pessoa não vai isentar o agente de responsabilidade criminal da pessoa que vem a incorrer nesses atos de justiçamento. Cada um dos agentes vai responder pelos crimes pelos quais eles concorreram, seja o simples exercício arbitrário das próprias razões, que tem uma pena menor de 15 dias a um mês, seja uma lesão corporal, seja um homicídio, essas pessoas vão responder e podem vir a serem coletivamente processados. A única dificuldade que se tem nesse caso, quando existe uma pluralidade de pessoas envolvidas, é de você determinar a responsabilidade criminal de cada uma, então até mesmo de você conseguir identificar essas pessoas que incorreram no justiçamento, mas é importante que a população tenha consciência que, independentemente de ser praticado individual ou coletivamente, todas as pessoas que participam dessas práticas de justiçamento, estão sujeitas à responsabilidade penal. O monopólio da persecução penal, ou seja, de você determinar se alguém praticou um crime e aplicar em razão disso uma penalidade, uma sanção, isso é exclusividade do Estado. O Estado detém o monopólio da persecução penal, o que significa dizer que apenas os órgãos estatais,  Polícia Judiciária, Polícia Militar, Ministério Público e o Poder Judiciário, têm legitimidade para determinar se alguém praticou um crime e, em virtude disso, aplicaram a pena a essa pessoa que praticou o crime. Então, o justiçamento é algo terminantemente vedado em um Estado democrático de direito, porque cabe ao Estado efetivamente punir as pessoas que praticam crimes.

Há casos em que o justiçamento é praticado contra uma pessoa inocente, como no caso do entregador por aplicativo, ocorrido em Maceió na semana passada. Em casos assim, o que a vítima deve fazer e qual as consequências para os envolvidos? 

Existe o risco de que alguém que efetivamente não tenha praticado uma lesão ao direito alheio, ou seja, não tenha praticado crime ou qualquer conduta que violente direitos alheios, seja punida por justiçamento, injustamente. Que foi exatamente o caso que nós assistimos recentemente em relação àquele entregador. Então, é um risco muito grande das pessoas serem punidas, mesmo não tendo praticado crime algum. Por outro lado, nós ainda observamos que essas práticas de justiçamento, muitas vezes a pretexto de resolver crimes, acabam gerando outros crimes, como é o caso, por exemplo, dos linchamentos. Então, se alguém pratica um crime patrimonial, por exemplo, ele subtrai algum bem pertencente a outra pessoa, a lei determina que essa pessoa deva ser punida, todavia essa punição se dá a partir da observância de um procedimento para determinar que foi ela que praticou e, ao final, a sanção que essa pessoa receberá poderá ser, por exemplo, de uma pena privativa de liberdade. Então, os envolvidos vão ficar reclusos até que ela possa ser considerada apta após cumprir uma pena fixada em lei para retornar à sociedade, passando por um processo de ressocialização. O justiçamento não, geralmente ele busca resolver por exemplo crimes patrimoniais a partir da prática de outros crimes que aí pode ser exercício arbitrário das próprias razões, lesão corporal, em alguns casos chegando até o homicídio.

O que diz a lei sobre a prática de justiçamento? Há celeridade na aplicação da justiça?

É muito relativo, vai depender das condições da vítima e do próprio caso concreto, porque se disso gerar um homicídio eventualmente qualificado, por ser um crime hediondo,  ele vai ter uma prioridade na tramitação, ele vai, digamos que, correr mais rapidamente na justiça. Caso a vítima do justiçamento seja também idosa, isso vai ter uma tramitação mais séria, mas a princípio, o simples fato de ter existido um justiçamento não vai implicar em alguma celeridade. 

De que forma imagens gravadas da prática ou momento do justiçamento podem contribuir para a aplicação da justiça nestes casos? Elas são consideradas provas?

Imagens são fundamentais para determinar a existência dessas situações de justiçamento, que a gente chama de materialidade, bem como e principalmente a autoria, quem foram as pessoas que praticaram esses justiçamentos. E é curioso porque, me permita fazer aqui esse parêntese, a gente observa, por exemplo, no Rio de Janeiro, a formação de grupos de justiceiros que estavam produzindo provas contra si mesmos. Então, eles próprios gravavam as práticas de justiçamento que eles praticavam, inclusive divulgavam, difundiam isso em redes sociais. Essas imagens são perfeitamente consideradas provas, desde que sejam filmadas por câmeras de vídeo monitoramento, circuito de segurança, ou nesses casos que a pouco citei pelos próprios justiceiros. Imagens são fundamentais, por isso, é importante uma pessoa vítima de um crime de justiçamento procurar a Polícia Militar e a Polícia Civil, por meio de uma delegacia, para notificar esse fato e já permitir que a autoridade busque essas imagens para identificar, de fato, que a situação existiu e identificar quem foram os autores. Dessas condutas de justiçamento.