Um dos títulos mais comentados do momento na plataforma de streaming Netflix, o documentário “O golpista do Tinder” mostra como um homem usou o aplicativo de relacionamentos para enganar inúmeras mulheres, causando um prejuízo de milhões de dólares para as vítimas.
O documentário tirou das sombras um problema tão antigo quanto os próprios sites e aplicativos de encontros, levando mulheres a revelarem experiências parecidas e, muitas vezes, silenciadas por anos, na maioria dos casos por um sentimento de vergonha.
A reportagem do CadaMinuto ouviu delegado, psicóloga e ex-usuárias de aplicativos para orientar vítimas e possíveis vítimas sobre como agir para não cair em golpes semelhantes ao mostrado no streaming e o que fazer, legalmente e emocionalmente falando, caso caia nas garras de um estelionatário amoroso.
Falsas vantagens
O delegado da Polícia Civil de Alagoas, Fábio Costa destacou que atualmente esses crimes são investigados pelas delegacias distritais, onde cada equipe dessas delegacias conduz as apurações. “Há alguns anos tínhamos uma delegacia especializada de combate a defraudações e repressão ao estelionato, mas foi extinta. Eu penso que uma delegacia especializada facilitaria um combate mais qualificado e uniforme a esse tipo de delito”, pontuou.
Os criminosos sempre agem oferecendo uma falsa vantagem para as vítimas e isso ocorre em quase todos os golpes, observou o delegado. A pessoa acha que está recebendo alguma vantagem e acaba se deixando seduzir pelos golpistas, assim como foi mostrado no documentário.
“As vítimas se encantavam com as extravagâncias oferecidas pelo estelionatário e imaginavam estar vivendo um conto de fadas, mas se viam posteriormente num filme de terror. Desconfie sempre das vantagens oferecidas. Outra dica é nunca enviar dinheiro ou informações financeiras. Proteja ao máximo seus dados pessoais, como endereço residencial ou comercial ou detalhes sobre a rotina diária”, recomendou Fábio Costa.
Boletim de Ocorrência
Em caso de suspeita de golpe, o delegado falou que a primeira medida é procurar a delegacia mais próxima e registrar um Boletim de Ocorrência para que a Polícia Civil possa responsabilizar criminalmente os autores do delito: “A polícia possui em seu sistema todas as ocorrências que foram registradas, por isso a importância fazer o Boletim de Ocorrência. Infelizmente são diversos casos de estelionato registrados todos os dias”.
“Tem sido muito comum o golpe do soldado americano em que os golpistas assumem o perfil on-line de um soldado americano na ativa ou reserva e, usando fotografias de um soldado da internet, constroem uma identidade falsa para começar a buscar na rede pelas vítimas. Eles fingem ser soldados dos Estados Unidos servindo em uma zona de combate ou outro local no exterior e pedem a suas vítimas que transfiram dinheiro para eles”, alertou o delegado.
Vulnerabilidade emocional
A psicóloga Daniela Maria explicou que pessoas de todos os gêneros, idades e classes sociais estão sujeitas a este tipo de golpe, mas ainda são as mulheres as mais procuradas. “Qualquer pessoa que pareça solitária e vulnerável emocionalmente torna-se alvo fácil dos golpistas nesses aplicativos. Os criminosos que praticam esse tipo de golpe apresentam aspectos que favorecem para a confiança e encanto da vítima, se mostram apaixonados de uma forma muito rápida e avassaladora”.
Daniela conta que, dessa forma, as vítimas imaginam que estão se comunicando com homens gentis, educados e confiáveis, quando, na verdade, eles estão prontos para escravizá-las e submetê-las à sua vontade.
“Há quem julgue as mulheres envolvidas neste tipo de acontecimento apenas como ingênuas, mas na verdade elas estão em alto risco de vulnerabilidade social e emocional, acometidas pelas características do perfil dependente emocional. Antes de serem vítimas, as mulheres com distorções emocionais são vítimas da própria ingenuidade, de pensamentos e crenças de que só será uma pessoa completa se estiver em um relacionamento, o que tornam suas bases e referências de amor frágeis, violentas e ilusórias. Essas crenças antigas vêm da família e da sociedade, por isso são difíceis de serem modificadas e possuem tamanha força, que mesmo sendo mulheres independentes, com carreiras e títulos, acabam se tornando, sem perceber, vítimas de golpes”, analisou a psicóloga.
Sequelas do golpe
Já tendo atendido algumas vítimas desses golpistas, Daniela disse que, antes de tudo, é necessário reforçar que ser vítima de um golpe pela Internet, infelizmente, não é uma situação incomum. “No mundo virtual tudo parece atraente e ideal, o que reforça a ilusão de que a vida perfeita existe e está ao alcance de todos”.
“Para as mulheres que foram vítimas é preciso encorajamento para buscar redes de apoio que restabeleçam a integridade, dignidade e segurança para que se tomem as providências legais. Vale ressaltar que a culpa do golpe não é da vítima, mas ainda assim é esperado que muitas não revelem os fatos vivenciados, temendo o fortalecimento de estereótipos preconceituosos criados pela sociedade machista e patriarcal”, prosseguiu.
Segundo a psicóloga, casos de golpes virtuais podem ir muito além do desconforto vivenciado no momento da descoberta da decepção, pois a vítima pode sofrer sequelas emocionais graves o resto da vida.
“Conviver com a dor de encontrar o amor da vida e depois descobrir que caiu em um golpe provoca na mulher danos emocionais muitas vezes difíceis de superar. Analisando os impactos emocionais por trás da frustação, fica registrada em sua história a marca da impotência, culpa, insegurança, indignação, constrangimento, humilhação, manipulação, traição, raiva, vergonha, isolamento e diminuição de autoestima, podendo evoluir para casos mais graves como depressão, pânicos, fobias e ansiedades”, pontuou.
Lembrando que, em alguns casos, é necessário também buscar ajuda psiquiátrica, Daniela conta que a medida mais eficaz para reduzir os danos deste trauma ainda é o acompanhamento psicológico com base na terapia cognitivo comportamental, “que irá auxiliar na identificação dos padrões de pensamento, crenças e hábitos disfuncionais que interfiram negativamente nos comportamentos e emoções”.
Contradições gritantes
A jornalista Cristina Sampaio, de 57 anos, contou que antes de conhecer o atual marido - em um site de relacionamentos - com quem está há sete anos, utilizou aplicativos por cerca de três anos e passou por pelo menos uma situação parecida com a mostrada no documentário.
“O golpe não se efetivou porque eu percebi, mas o modo de operar era bem parecido ao mostrado no Golpista do Tinder. A pessoa começa a dizer, em inglês, que achou você linda, conversa, pede o e-mail e manda fotos dizendo que é da Marinha americana ou da Aeronáutica, por exemplo... Eles pegam textos padrões em inglês, geralmente falando que é viúvo, está apaixonado, que você é o amor da vida dele, que está no meio do mar, a esposa morreu de câncer e ele precisa de uma mulher boa para casar de novo”, detalhou.
Cristina aconselha que a mulher deve pedir o máximo de fotos e informações sobre a pessoa, coisas possíveis de serem checadas, porque as contradições costumam ser gritantes.
No caso dela, depois da troca de fotos, o golpista ligou de um número internacional, mas a jornalista rapidamente percebeu que a voz e o trato, por telefone, eram bem diferentes dos textos e do tratamento on-line, sem contar que o sotaque não era de alguém de língua inglesa.
“Por fim ele disse que estava entrando em uma região em alto mar muito perigosa não sabia se ia sobreviver, pois havia grandes placas de gelo e o navio estava indo em direção a elas. Poderia acontecer uma tragédia, mas antes ele precisava mandar para mim não sei quantos mil dólares e precisava dos meus dados bancários, endereço... Então pediu que eu mandasse 3 mil dólares, que era o valor da taxa para ele enviar as coisas. Nesse ponto, eu falei, entre outras coisas, que ele aprendesse a dar golpes e que devia ser horroroso”, contou, acrescentando que, ao ser desmascarado, o golpista ficou agressivo, xingou e ameaçou ela.
A jornalista relatou também que, recentemente, uma amiga passou por situação semelhante. “Ela conheceu um suposto oficial da Marinha com essa mesma conversa, foto belíssima de um homem de seus 50 anos, malhado, louro dos olhos azuis. Em inglês, ele dizia que estava indo para uma missão no Iraque e depois de várias conversas e troca de fotos, prometeu que quando voltasse da missão viria ao Brasil para encontrá-la. Enfim, o mesmo script. Minha amiga chegou a mandar a conta bancária e o endereço, mas consegui alertá-la a tempo. Ela ficou arrasada, mas só percebeu, só abriu os olhos para a quantidade de contradições na história dele quando conversamos”, finalizou Cristina.
Final feliz
A empresária Karina (nome fictício a pedido da entrevistada) tem uma história considerada exceção, já que a maioria das pessoas demora para encontrar o tão sonhado “final feliz” nos aplicativos de relacionamentos. Ela contou que utilizou o Tinder por apenas meia hora e que nesse curto espaço de tempo conheceu o homem com quem está casada há seis anos.
“Eu disse que queria fazer amizade porque estava morando em outro país e o curso que estava fazendo tinha terminado, meus amigos estavam voltando para os respectivos países. Como não conhecia ninguém, fiz o meu perfil por insistência da minha prima que costumava usar o aplicativo no Brasil. Eu nunca tinha usado”, explicou.
Depois do “match” e alguns dias conversando pelo aplicativo, ela e o paquera trocaram telefones, cancelaram os perfis e estão juntos até hoje.
Ao ser questionada se passou por alguma situação parecida com a apresentada no documentário, Karina disse que nunca sofreu nada semelhante, até porque usou o aplicativo “por pouquíssimo tempo”.
No entanto, primando pela sua segurança, a empresária comentou que nos poucos minutos em que usou o Tinder, várias pessoas lhe escreveram e ela foi cancelando os que considerava “bem atirados”. “Com o meu marido até aconteceu uma coisa engraçada, encontrei outro perfil dele com nome diferente. Eu perguntei quem era essa pessoa que estava usando a mesma foto dele com outro nome. Aí, ele respondeu: coitado, deve ser muito feio para usar a minha foto como dele. E acabamos tirando muita onda com isso”.
A entrevistada disse que a única coisa exigida por cada um deles (ela e o marido) quando se conheceram foi que enviassem uma foto feita naquele dia e momento, para ver se era a mesma pessoa do perfil. “Eu morava a duas horas da cidade dele. Então, combinei um almoço em um restaurante bem movimentado no Centro da minha cidade, no dia em que veio me conhecer. Depois de alguns dias, sempre nos comunicando com o aplicativo, eu viajei e ele também. Resolvemos trocar os telefones e passamos 15 dias nos comunicando por WhatsApp”.
No entanto, ela frisou que sempre esteve atenta aos sinais da sua intuição. “Como já tinha muita experiência em viajar e morar em outros países, desenvolvi o meu próprio método para reconhecer as pessoas. Sempre confiei nisso. Tive algumas decepções, mas nunca me deparei com situações de verdadeiro perigo. A minha fé sempre me protegeu, mas não quero dizer que seja a forma mais segura para se comportar. Comigo sempre deu certo”, comentou.
Valeu a pena
Conheço muitas histórias felizes envolvendo aplicativos de relacionamentos, afirmou Karina. “Antes de usar o aplicativo, tinha uma amiga que também conheceu seu marido no Tinder. Eles casaram oficialmente. Tenho também uma amiga carioca que conheceu seu marido alemão da mesma forma. E vive hoje na Alemanha muito bem casada e feliz. Eu vivo há seis anos com essa pessoa que eu conheci em 15, 20 minutos de uso do Tinder. Tenho com ele os problemas inerentes aos relacionamentos normais, assim como os que tive com pessoas com quem convivi durante anos, que eram da minha convivência dita ‘segura’”.
“Vivo com uma pessoa de bom caráter e que tem tudo a ver com a minha forma de encarar a vida. Somos completamente adaptados e aceitos pelas nossas respectivas famílias e amigos. O Tinder ajudou nisso? Absolutamente sim! Porque somos já adultos e não queríamos estar na rua ‘buscando’ pessoas para conhecer. Colocamos um perfil e um cálculo que eu não entendo bem fez as combinações ideais para que nós nos descobríssemos. Prefiro acreditar que ali também tinha a mão de Deus para que duas pessoas com tantos projetos e ideais em comum fossem atraídas uma para a outra. Estamos felizes juntos e não me arrependo de ter lançado mão desse mecanismo. Ao contrário, sou muito grata”, concluiu.