Todo mundo quer “foro privilegiado”

05/01/2022 10:57 - Blog do Celio Gomes
Por redação
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Uma das prioridades num projeto de renovação da política é acabar com o foro privilegiado. Essa ideia ganhou holofotes, microfones e atenção generalizada nos últimos anos. É uma das bandeiras que o fanatismo idiota, a ignorância e a demagogia embalaram na onda da Lava Jato. A “nova direita” pregava a extinção do foro especial para políticos em todas as esferas no exercício de um mandato. Bolsonaro, antes de eleito presidente, decretava todo dia que isso daí era coisa de bandido.

Estamos falando oficialmente do foro por prerrogativa de função. O presidente da República, congressistas, integrantes do Judiciário, do Ministério Público e governadores, entre outros, só podem ser processados e julgados nos tribunais superiores. A exploração política do tema chegou às ruas e incendiou as esquinas, os táxis-lotação e os grupos de WhatsApp. De repente, todo mundo queria aniquilar o maldito “foro privilegiado”.

Uma loucura! O chamado ordenamento jurídico brasileiro consagra o foro especial desde o Império. A essência dessa figura do Direito é garantir a independência do julgador e um veredito justo para o réu. O mesmo vale, é claro, para todas as etapas de investigação. É uma ação preventiva, dados o alcance e a relevância de determinados cargos e funções na vida pública. Apenas a ditadura instalada em 1964, com o indecente AI-5, ousou suspender essa regra.

No limite, caso prosperassem os desvarios da militância pela extinção do foro por prerrogativa, qualquer juiz de primeira instância poderia tomar decisões contra o presidente da República. Se não chegamos a tanto, vimos operações contra parlamentares, até com buscas no Congresso, decididas a partir de investigações fora dos tribunais superiores.

Isso passou a ocorrer porque o STF cedeu à “voz rouca das ruas” e vem desfigurando, em capítulos, a arquitetura de uma garantia constitucional. Pelo menos de 2017 para cá, foram várias as decisões do Supremo a relativizar o que estava escrito na Carta. Uma novidade foi restringir o foro a casos em que o suposto crime tenha ocorrido no exercício do mandato; é preciso ainda que o delito tenha ligação direta com as atividades desse mesmo mandato.

No meio do debate o Congresso já aprovou emenda à Constituição, o que não resultou em boa coisa. Na verdade, precisamente por essas mudanças promovidas no parlamento e no Supremo, hoje predomina a assombração da insegurança jurídica. A qualquer hora, um magistrado com manias de um Moro ou de um Bretas pode balançar a República, mandando prender e arrebentar qualquer autoridade do Executivo ou do Legislativo. 

As voltas que o mundo dá... Quem um dia pregava que um dos males do país era o foro privilegiado, a saúva daquela fábula nacional, agora se vale dessa prerrogativa. E há os que buscam a qualquer custo obter a “proteção” disputando um cargo eletivo pela primeira vez. Aí vão alguns desses autoproclamados guerreiros da moralidade: Flávio Bolsonaro, Jair Bolsonaro, Aécio Neves, Sergio Moro, Deltan Dallagnol, Luciano Hang, Ernesto Araújo, Ricardo Salles.

Toda essa turma e mais uma multidão de picaretas defendiam a extinção da regra constitucional cujo princípio vigora há quase dois séculos. Em 2022, ano eleitoral, todo mundo corre alucinado na direção contrária do que antes pregava. Coerência entre discurso e prática fica pra depois.

Para muitos patriotas, portanto, “foro privilegiado” deixou de ser um incentivo à impunidade nos crimes de corrupção na política. Nem falam mais no assunto. Estão concentrados nos esquemas para se eleger nas urnas e, que ironia, garantir o status de autoridade com foro especial. Aquela histeria coletiva, “na defesa do interesse público”, nunca foi coisa séria.

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