A grande aventura do pensamento

04/08/2019 16:28 - Blog do Celio Gomes
Por Redação
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Vale o que está escrito. Se é preto no branco, nada a contestar. É o que se ouve tantas vezes, quando se avalia qualquer tipo de impasse, de disputa, seja no âmbito de contratos privados, seja em casos que vão bater na esfera judicial. Foi para isso, afinal de contas, que inventamos regulamentos, editais, códigos, regimentos, estatutos, portarias, decretos... Basta seguir as regras acordadas pela sociedade, e tudo estará devidamente pacificado. No Império da Lei, uma certeza: isso não é aquilo.

O problema é quando chega a hora de levar à prática o que está previsto em artigos, alíneas, emendas e adendos. Ao caminho até então incontornável para se chegar à verdade juntam-se vias alternativas, rotas inesperadas, estradas eventualmente clandestinas e atalhos cheios de perigos e armadilhas. O que foi posto no papel, segundo princípios da lógica, da clareza e da objetividade, vira uma fábrica de inquietantes enigmas, desencontros e conflitos. Isso, talvez, seja aquilo.

O paradoxo, a contradição e a ambiguidade são traços inseparáveis de nossos movimentos no cotidiano. São também determinantes nas escolhas que faremos pela vida afora – ainda que um pertinente discurso em nome da razão tente subestimar o peso dessas categorias. Não adianta. Será assim na escola, no trabalho, no ambiente restrito da casa ou na vastidão desordenada da rua. Deve ser por isso que são tão frequentes expressões nesta linha: “A depender do ponto de vista...”!

Com variações na retórica argumentativa e diferentes níveis de engajamento nas premissas, o universo do conhecimento estimula a dúvida, o olhar difuso, a incerteza. Em alguma aula de ciências humanas, você certamente foi instado a opinar sobre o conceito de Realidade. Diante de tal provocação, à medida que vão surgindo as ideias individuais, percebe-se o abismo entre a rigidez conceitual e o estilhaçado lugar-comum. Sendo assim, como decidir com a desejável segurança?

Naturalmente, esse conjunto de dispositivos mentais, com todos os aspectos que influenciam a construção de uma visão de mundo, terá efeitos diversos, mais ou menos determinantes, na formulação de um veredito sobre qualquer contencioso. A equalização de um dilema de ordem moral será sempre mais delicada quanto maior seu potencial de alcance – não somente sobre o indivíduo, mas sobre toda uma comunidade. O certo e o errado trocam de lugar perigosamente.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”! Essa é a sentença mais enganosa que os tolos tratam como mandamento acima de qualquer contestação. O que parece escancaradamente plausível é, pensando bem, o elogio da miséria intelectual. A seguir o dogma, que não passa de falácia, tão sedutor como o clichê e a frase feita, fechamos a porta para o colar de maravilhas que nos oferecem o mistério e o surpreendente. A simplicidade não combina com o simplório. 

Talvez atento a esse vasto livro da experiência humana, eternamente aberto para o intangível, um matemático russo, de quem esqueci o nome, tenha elaborado a sua Geometria Imaginária, desafiando séculos e séculos de dominação euclidiana. Assim como em todas as atividades, não se trata meramente de exaltar o vale-tudo, mas de estar disposto ao risco e à rebeldia, para testar as margens e os limites daquilo que um dia se acomodou entre a consagração e o cânone.

Numa antiga entrevista, Bob Wilson, o multiartista que reinventou o teatro no século XX, deu uma explicação desconcertante sobre seu método de trabalho. Toda vez, conta ele, que está em meio a um novo projeto, já com ensaios em andamento, ao perceber que está cheio de certezas, abandona a ideia e recomeça do zero. Ter a convicção de que achou o jeito certo na arte, acrescenta, é o mais tosco do que pode lhe ocorrer. O contrário, portanto, do que ensina o abominável coach.

O quanto desse modo, vamos dizer, dialético e errático de tocar as coisas fortalece a civilização ou incentiva a barbárie, talvez seja o coração da nossa aventura. Quando se trata do estado de direito e das leis, é outro departamento. E, se no começo do texto, enveredei por aí, o raciocínio se desgarrou, atraído pelas conexões que fazem palavra puxar palavra, dobrando uma esquina atrás da outra, na espiral incontrolável que mistura e separa o verbo e o silêncio. Todo dia, afinal, é dia de desaprender. 

NOTA. Na imagem lá do alto, um poema do grande poeta português E. M. de Melo e Castro.

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