2018-2019, entre uma jornada e outra

31/12/2018 17:31 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

No último dia do ano, volto às pressas ao blog, antes que o CADAMINUTO me demita, sob a acusação de abandono das minhas obrigações. É que às vezes o texto trava, as palavras desaparecem e tudo o que sai parece inútil. Ainda bem que o Carlos Melo, comandante deste aguerrido portal de notícias, é paciente com meu recorrente descaso. Quanto aos leitores, suspeito que não devem ter razões para celebrar o falatório diário de um jornalista desmiolado. De todo modo, meu amigo, como continuo nas paradas, atirando pra todos os lados, vamos nessa.

Por falar em texto e palavras, em 2018 a literatura brasileira viu um estreante pintar na área fazendo barulho. Geovani Martins lançou Sol na Cabeça, livro de contos que mergulha no cotidiano daquilo que conhecemos como mundo marginal, com personagens carimbados como rebeldes, malditos, excluídos – e tudo o mais nessa teia de categorizações disparatadas. Mas o que balançou boa parte de críticos e leitores foi a operação da linguagem em Martins. O cara mostrou estilo.

Gostei dos contos, embora veja certo exagero na celebração ao novo escritor. Foi tratado como se reinventasse a roda, mas suas frases curtas, abarrotadas de gírias, além dos diálogos em escala precisa no aparato coloquial, passam longe de uma revolução literária – como alguns resenhistas decretaram. Martins não chega nem perto de um João Antônio, por exemplo, mestre na arte de narrar as aventuras, maravilhas e mazelas da marginália. A literatura não começou ontem.

Ainda no campo dos livros de autores brasileiros, 2018 ganhou o novo romance de Cristovão Tezza, sem dúvida um de nossos melhores prosadores contemporâneos, talvez o melhor. No extraordinário A Tirania do Amor, somos capturados não apenas pelo enredo – todo inspirado no colapso nacional de hoje – mas também pela forma como se conta a história. Ao contrário do jovem Martins, Tezza é um veterano que, a cada título, reafirma sua inventividade e seu apuro na arte de escrever.

Sim, também vou falar de Jair Bolsonaro neste 31 de dezembro. Mas, para isso, ainda recorro à literatura. O escritor Ricardo Lísias, dado a projetos inusitados, apresenta o urgente e provocativo Diário da Catástrofe, obra que ele começou a escrever no dia 28 de outubro, horas após a confirmação da vitória do capitão da tortura. O autor pretende escrever todos os dias, até o fim do mandato do presidente. Sem editor, tudo vai para a internet, e a parte inicial da porrada já está no ar.

(Sobre o mito delinquente, paro por aqui, para não baixar o astral a poucas horas da virada). Nada vai mudar, cantaram aqueles velhos roqueiros das Alagoas. Mas nós temos uma queda irresistível pela tal esperança, essa fantasia pegajosa cujo efeito prático é nada além do autoengano. Baseado nas estrelas, nos orixás ou em Jesus, entre tantos oráculos de outros mundos, você acredita mesmo que seu destino é a felicidade suprema e infinita. Faz sentido: dezembro é tempo de Papai Noel.

A última segunda-feira do ano velho veio com uma quentura de matar. O sol quente em nossa cara. A depender de cada um, você pode se sentir mais instigado a estripulias. Pela manhã, vaguei entre o Tabuleiro e o Vergel, passando pelo Centro. O trânsito mais leve sinaliza duas coisas naturais. Uma: a galera pegou a estrada. Duas: repartições públicas ligam o botão do foda-se o povo, e fecham as portas. Está errado, naturalmente, porque o feriado é só no dia primeiro. Tradição é isso aí.

Errando pela cidade, vi que as ruas no comércio central de Maceió fecham 2018 do jeito que estiveram nos demais meses do ano – cheias de ambulantes e camelôs. Melhor assim. Como já escrevi aqui, a paisagem fica mais colorida e vibrante com a agitação e o vozerio dos batalhadores. A prefeitura precisa deixar esse segmento em paz. Se nada faz pra ajudar, então que não atrapalhe famílias que pegam pesado no batente pra viver. Isso ainda se chama dignidade.

Fosse eu dado a medo de assombração e coisas medonhas, estaria preocupado com o ano que vem. Explico: Maceió está tomada por outdoors com o focinho de políticos desejando boas festas e feliz 2019. Ou seja, essas mensagens, ao contrário do que está escrito na propaganda, estão mais para maus pressentimentos. Um bando de parasitas posando de alguma coisa relevante. Sai pra lá.

Como o leitor pode perceber, o blogueiro continuará disposto a escrever o que pensa, sem preocupação com melindres de qualquer bando. É minha cláusula pétrea no acordo com a direção do portal – sem medo de nenhum tema, com a indispensável liberdade. E nada mais posso oferecer. Dito isso, um 2019 na paz. Pra fechar, leia abaixo um escrito do poeta Cosme Rogério Ferreira.

JORNADA

Tomo distância da vida cotidiana

E, me pondo a refletir, escalo a serra

E com toda experiência de quem erra

Pela própria minha condição humana

As ideias se juntam em caravana

E se lançam para o aldeamento

Onde cessa todo meu entendimento

E começa minha alucinação

A estrada é o limite da razão

E a loucura fica além do acostamento

 

Nota. Cosme Rogério Ferreira nasceu em Magé (RJ), mas pegou o trem para Palmeira dos Índios ainda nos tempos de criança. É professor de Filosofia do Ifal. O poema “Jornada” está no livro Radiações de Fundo Cósmico, lançado em 2016 pela editora da Imprensa Oficial Graciliano Ramos.

Comentários

Os comentários são de inteira responsabilidade dos autores, não representando em qualquer instância a opinião do Cada Minuto ou de seus colaboradores. Para maiores informações, leia nossa política de privacidade.

Carregando..