Um dia desses alguém desenterrou um episódio que revela do que é capaz a cabecinha de João Dória, o ex-prefeito de São Paulo que tenta a eleição para governador. Na década de 1980, quando era presidente da estatal Embratur, o elemento propôs explorar a seca do Nordeste como atividade turística. A cretinice está devidamente documentada em publicações da época.

 

Lembrei disso ao ver a campanha publicitária da Globo sobre sua nova série, Onde Nascem os Fortes, que estreia esta semana. O marketing para promover a historinha água com açúcar invade não apenas os intervalos comerciais, mas todos os telejornais da casa, incluindo todas as suas afiliadas no país inteiro. Disfarçada de jornalismo, a propaganda se exibe como reportagem.

 

Mas o ponto aqui não é o padrão jornalístico praticado na escola global. Quero falar da paisagem que serve de cenário para a trama novelesca. A história é ambientada nos confins sertanejos da Paraíba. Basta olhar as cenas que aparecem nas chamadas para constatar a reafirmação de uma tradição complicadíssima: outra vez, o velho Sertão do Brasil vira mitologia de butique.

 

É um fenômeno com uma longa história na cultura brasileira, cheia de capítulos bastante diversos entre si. No caso Globo, sua investida sobre a aridez nordestina se filia aos piores momentos dessa atração eterna que o Sertão exerce sobre a arte e o artista. Quando vejo galãs e beldades fazendo cara de mal ou de sofreguidão, à base de maquiagem cuidadosamente fabricada... Rapaz, não é fácil.

 

No universo do audiovisual, o cinema chegou antes. Nas décadas de 1950 e 60, deu-se a primeira febre da exploração da vida nas terras brutas e selvagens. De Lima Barreto, com o seu O Cangaceiro, a Glauber Rocha, com Deus e o Diabo na Terra do Sol, passando por Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, tudo o que é artista de Copacabana e Ipanema pegou carona nessa onda.

 

De lá para cá, teve de tudo, com resultados quase sempre desastrosos. Não é o caso dos filmes que citei, embora não tenha muita simpatia pelo título de Nelson Pereira, e O Cangaceiro tenha valor exclusivamente arqueológico, digamos assim. Glauber produziu uma obra-prima absoluta – que aliás fica mais forte à medida que o tempo passa. É uma rara e extraordinária exceção no conjunto.

 

Nos últimos vinte anos, nas intermináveis “retomadas” do cinema brasileiro, o Sertão voltou às telonas pelas lentes de cineastas nascidos no Nordeste. São os tais ciclos de Pernambuco e do Ceará. Mesmo com abordagens variadas, e menos papagaiada, a média é perigosamente equivocada. Mas nada supera os globais. Eu, Tu, Eles resume o que pode haver de pior nessa cinematografia.

 

O filme é dirigido por Andrucha Waddington, que confunde arte com publicidade. Sua pretensão de retratar o Brasil profundo – fixação delirante, aliás, em nosso cinema – resulta apenas em bizarrice. A técnica sofisticada, os filtros que retocam a imagem, os cenários plastificados, tudo isso é de embrulhar o estômago. Regina Casé de sertaneja está à altura dessa pretensiosa macacada.

 

Eis o Sertão – fantasiado e folclórico – que as câmeras da Globo começam a exibir, mais uma vez e como sempre, a partir de agora. Nenhuma surpresa, é verdade; mas sempre deplorável. Talvez isso explique, em parte, a hilariante proposta de João Doria. Estamos vendo um crime continuado.