É jornalismo ou descarada publicidade? O dia em que Otto venceu o Louro José

31/03/2018 01:08 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Você procura notícia. Abre um jornal ou uma revista – parece que não, mas jornal e revista ainda existem –, e lá está uma reportagem sobre o lançamento de um novo produto, de um show ou de um projeto inovador. Tudo nos leva a acreditar que é informação factual, um assunto que se tornou pauta da imprensa pela intrínseca relevância daquilo que está sendo veiculado. Nem sempre.

 

Um dos pecados mortais no jornalismo é a reportagem que é tudo, menos reportagem. Aquilo que é vendido ao leitor, com toda a maquiagem de notícia, pode ser tão somente o resultado de uma transação comercial entre a empresa de comunicação e um anunciante disfarçado. Durante minhas temporadas na direção de redações, foram muitas as brigas para repelir esse tipo de fraude.

 

Contarei aqui três episódios. O primeiro é bem antigo, lá dos anos 1990, quando dirigi o departamento de jornalismo da TV Gazeta. Concurso público e vestibular sempre rendem cobertura da imprensa. Numa dessas ocasiões, uma pauta corriqueira mandava o repórter percorrer alguns cursinhos para ouvir, claro, professores e candidatos. Assim foi feito.

 

A matéria foi exibida na edição noturna do ALTV. Antes mesmo do encerramento do telejornal, o próprio diretor comercial da emissora praticamente invade minha sala, ensaiando um chilique, esbravejando a seguinte pergunta: “Porra, Célio, que sacanagem é essa?”. Ele estava indignado porque um cursinho que era forte anunciante da casa não fora contemplado na reportagem.

 

Antes de mandá-lo pastar, expliquei ao sujeito que minha equipe não era formada por contatos comerciais, e sim por jornalistas. Acrescentei que se ele contava com o departamento de jornalismo para estelionato e extorsão, e com isso apresentar lucros à empresa, suas contas iam ficar no vermelho. A ironia é que se tratava de um diretor trazido de fora, recomendado pela Globo.

 

Em outro caso, nos anos 2000, já como editor-chefe da Gazeta de Alagoas, deu-se a maior confusão quando criamos o caderno Maré – que existe até hoje. Logo na estreia, o departamento comercial vendeu um anúncio de umas três páginas – e, eu saberia depois, garantiu ao cliente que o assunto estaria na capa, como se fosse uma informação jornalística. Derrubei a bandalheira sem hesitação.

 

Quando a edição foi para a gráfica, o então diretor comercial soube que sua criminosa armação estava morta. Foi uma sucessão de lances dramáticos, com ligações por toda a noite e apelos à cúpula da empresa, na tentativa de mudar minha decisão. Inútil. Na capa do caderno saiu a reportagem escolhida pelos editores, como tem de ser. O diretor que se virasse com seu cliente.

 

O terceiro episódio tem uma boa dose de comédia. E aqui a história mistura as duas empresas da Organização Arnon de Mello. Ainda no cargo de editor-chefe da Gazeta, recebi um pedido para registrar a ilustre visita do Louro José a Maceió. O personagem, parceiro intelectual de Ana Maria Braga, fazia uma turnê pelo Brasil. Era, naturalmente, uma demanda comercial da Globo.

 

Apesar da marmota, como a celebridade animal arrastava uma multidão de fãs por onde passava – e era de interesse “institucional” da Globo –, a direção da Gazeta contava com minha sensibilidade. Fizemos a cobertura do acontecimento, com direito a encontro do Louro com o público na praia da Pajuçara. Mas houve uma verdadeira crise após a publicação da matéria.

 

Saiu um breve registro do fato, em página interna do Caderno B, na sessão destinada ao circo da televisão. O bicho pegou. A cúpula da empresa estava certa de que o Louro José estaria nada menos que na capa do caderno, como a principal reportagem, e chamada na primeira página do jornal. Isso eu jamais faria, a não ser que estivesse a um passo do hospício, por colapso mental.

 

O terremoto – afinal era uma ordem da Globo para sua afiliada – rendeu um momento único em minha trajetória nas redações. Houve uma reunião de emergência da diretoria. Os mais exaltados me perguntavam por que eu havia preterido o Louro José em nome de uma capa do B com o cantor e compositor Otto, que na época lançava mais um de seus extraordinários trabalhos.

 

Perguntei se alguém ali sabia quem era Otto. Silêncio. Então, sapequei uma sinopse sobre coisas como circuito musical alternativo, nomes da safra pernambucana e cena independente. Mostrei que Otto foi capa dos maiores jornais do país, e que era um dos grandes renovadores da música brasileira. Finalmente, lembrei que falávamos de um caderno cultural, não de um suplemento de piadas.

 

Situações como essas que acabo de contar estão na rotina de qualquer jornalista no comando de uma redação, não importa o tamanho do veículo. As experiências que vivi me fazem crer que há sempre margem para o debate. Se a diplomacia não resolve, tem de partir pra porrada. A tragédia é quando os dois lados – jornalismo e comercial – viram sócios. Aí, camarada, estamos perdidos.

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