Vida, Morte e Ideologia

30/10/2017 15:37 - Aurélio Schommer
Por Aurélio Schommer
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Dizia Schopenhauer:

“Quem permaneceria na vida, como ela é, se a morte fosse menos aterrorizante? E quem poderia sequer suportar o pensamento da morte se a vida fosse um júbilo! Mas ela tem ainda o lado bom de ser o fim da vida, e nós nos consolamos dos sofrimentos da vida com a morte, e da morte com os sofrimentos da vida”.

No tempo de vida de Schopenhauer (1788-1860), tudo era muito mais difícil do que hoje, exceto talvez estar desobrigado de responder mensagens no Facebook. Ou seja, a vida era bem mais sofrida. Eu, ao contrário de Schopenhauer, prefiro me consolar dos sofrimentos da vida com mais vida, vida que na pior das hipóteses é engraçada.

Deixemos logo de lado a crença cristã em vida eterna e a crença popular em metempsicose (reencarnação). Demonstrei em meu livro O Evangelho segundo a filosofia que são crenças não muito convictas, espécies de esperança sem fundamentos outros que a própria esperança. Não precisamos nos demorar em analisar aqui tais crenças, pois é fácil constatar que tanto cristãos quanto crentes em metempsicose não buscam avidamente a morte, preferindo quase todos eles prolongar a própria vida tanto quanto possível e, no mais das vezes, zelar pelas vidas alheias.

Há quem ache a vida ruim; a morte, boa. Há quem ache a vida boa; a morte, ruim. Creio que a maioria oscile entre as duas posições ao sabor das circunstâncias. Tendo a crer que aqueles nos quais predomina a segunda posição tendem a fazer escolhas melhores, tanto pessoais quanto políticas.

Desconfio de quem vive a reclamar da vida como ela é, da opressão do mundo no estado em que se encontra. Desconfio mais de quem afirma ser o passado, sobretudo o passado remoto, melhor, os tempos atuais seriam prenúncio do fim dos tempos. Desconfio de quem divide o mundo em opressores e oprimidos, por mais que vejam assim a partir de um filtro de boas intenções. A propósito, desconfio de boas intenções. 

Desconfio de quem deseja mudanças bruscas, de quem queira mudar tudo a partir da destruição do que aí está, demolir primeiro para depois reconstruir. Pode ser uma boa ideia em urbanística, mas humanos não são tijolos e vigas. 

Quem quer mudar o mundo porque o acha muito ruim, quando consegue, acaba por implantar um mundo ainda pior, as revoluções socialistas todas estão aí para o provar. “Um outro mundo possível”, como pregava o socialista Milton Santos, será uma paródia ruim do mundo como ele é. Não, não estou propondo uma fossilização do atual estado de coisas, pelo contrário. Prefiro contemplar o tempo de Schopenhauer para constatar que não estamos noutro mundo em relação a ele, mas no mundo que se fez possível pela natural evolução de um mundo já então marcado pelo pensamento conservador.

Devemos conservar e buscar aprimorar com prudência o que temos de melhor e de pior, pois mesmo o que nos parece ruim tem sua razão de ser e devemos tentar compreendê-la. Isso vale para nós mesmos, enquanto indivíduos, e para o mundo.


Note-se que, em geral, os conservadores são a favor da vida, da concepção aos últimos dias, a favor da vida de todos. Já os revolucionários anseiam por matar o “velho homem” na esperança de nascer o novo e então implantar o “outro mundo possível”. Anseiam por matar literalmente seus contrários, os imaginados “opressores”, que se recusam a morrer para tornar possível o parto de uma nova humanidade, ao final uma humanidade natimorta, desidratada de seu individual em nome de um coletivo efetivamente opressor. Nas palavras de Nelson Rodrigues:

“Geralmente, o anticomunista diz que não é. Mas eu sou e confesso. E por quê? Porque a experiência comunista inventou a antipessoa, o anti-homem. Conhecíamos o canalha, o mentiroso. Mas, todos os pulhas de todos os tempos e de todos os idiomas, ainda assim, homens. O comunismo, porém, inventou alguém que não é homem. Para o comunista, o que nós chamamos de dignidade é um preconceito burguês. Para o comunista, o pequeno burguês é um idiota absoluto justamente porque tem escrúpulos”. 
Às vezes, eu mesmo me pego a pensar como Schopenhauer. Misantropo e macambúzio como ele, mais do que as circunstâncias, me pesam o tédio e a impaciência. Mas a impaciência em mim acaba sendo o lamento de que me falava Hélio Pólvora: a sensação de que os grãos de areia da parte de cima da ampulheta que marca meu tempo de vida estão a escassear.

A morte é a marca mais evidente dos triunfos das ideologias, morte matada, injusta; morte em vida, pelo advento da antipessoa. Quanto à morte morrida, natural, segue aterrorizante, como observava Schopenhauer. Talvez mais, pois nosso tempo chama, ou deveria chamar, para a vida. 

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