A infância política

26/09/2017 09:15 - Aurélio Schommer
Por Aurélio Schommer
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Freud dizia que a criança é um polimorfo perverso, que busca a satisfação de seus desejos no imediato. Eduardo Giannetti da Fonseca defende O valor do amanhã, título de um livro seu que versa basicamente sobre o quanto é melhor adiar desejos de usufruto e, pelo esforço metódico e contínuo, conquistar resultados sólidos, com usufrutos mais satisfatórios. 

Na verdade, nem uma coisa nem outra. Em longo prazo, estaremos todos mortos e nada é previsível.  E o juízo da criança não é necessariamente melhor do que o de alguém de meia-idade. Sabemos, por estatísticas, que a tendência a fazer merda é mais acentuada nos jovens entre 15 e 25 anos, mas, em compensação, estes estão no auge de suas capacidades físicas e intelectuais. Não há que se falar em uma hierarquia entre fases da vida humana, e a política o demonstra.

Se compilarmos dados de eleições em países democráticos, veremos que não há diferenças significativas entre o voto jovem, o de meia-idade e o idoso. Entre a direita, a esquerda e o centro, supondo (e isso não é uma certeza) que o centro seja o melhor caminho, não está claro que os jovens votam pior. 

Os mais nocivos golpes de estado, como o dos jacobinos na Revolução Francesa, o bolchevique na Rússia, o chavista na Venezuela e o nazista na Alemanha, foram conduzidos majoritariamente por líderes de meia-idade, que clamaram pelo apoio jovem. O apoio veio, mas não de uma maioria, posto que mudanças bruscas não são conduzidas por maiorias, e sim por minorias que vencem pela demora ou ausência de reação da maioria. Ademais, costumam contar com o apoio de muitos idosos ressentidos ou ansiosos para que, depois de décadas de vida modorrenta, algo radicalmente novo se apresente. 

A verdadeira infância política, se por “infância” concedermos a um senso comum que atribui aos jovens uma tendência maior a cometer erros, imaturidade e insensatez, é se fiar em guias, em líderes, quase sempre acompanhados por minorias fanáticas e barulhentas. O culto à personalidade, a um pai (note-se a raridade das “mães” nesses cenários), se não é infantil, certamente é imaturo e insensato. 

Na vida pessoal, íntima, fazer-se independente não parece uma boa escolha. Salvo exceções, depender de alguém e vice-versa, em simbiose, é melhor para a saúde (comprovadamente, em evidências estatísticas, vive-se significativamente mais) e para a prosperidade pessoal. Mas a vida a dois ou em família será tanto melhor quanto mais a dependência não significar hierarquia, liderança absoluta de um dos entes da relação.

Na política, dá-se o mesmo. Ainda que a relação entre guias absolutos e as massas também seja simbiótica, o caráter autoritário infantiliza os liderados, “infantilizar” aqui no senso comum de que os pais devem fazer pela criança todas as escolhas da criança. Depender uns dos outros, por meio de escolhas negociadas cotidianamente, em contratos livres, é o oposto, e costuma chegar a excelentes resultados.

Dois exemplos para elucidar a tese. A Suíça nasceu da Confederação Helvética, que por sua vez pressupunha a absoluta igualdade hierárquica entre os cantões que a constituíam. Essa igualdade perdura no país moderno e, talvez para afastar qualquer possibilidade de dissolvê-la na prática, tem como um de seus resultados mais notáveis o fato de ser a única nação independente que não tem um líder eleito, mas um Conselho com sete membros e poder equilibrado entre eles. Nada de alguém para infantilizar os liderados.

Na América Latina, as mentalidades infantis de qualquer idade clamam por ser desobrigadas de pensar por conta própria tanto mais suponham que o façam. Vem sobretudo de nossos intelectuais o clamor pela eleição de líderes autoritários e carismáticos, condutores da “revolução” (e como se ama essa palavra por aqui, uma palavra que evoca no mundo todo, em todos os tempos, o prenúncio de tempos ruins). De Solano López a Hugo Chávez, passando por Pancho Villa, Perón e Fidel Castro, nunca faltaram intelectuais a lhes preparar o terreno, pregando a necessidade de alguém a conduzir à independência e ao paraíso das puras gentes do povo (as crianças que tanto o intelectual quanto o tirano político desejam conduzir e fazer escolhas por ela).

No Brasil, a corrupção identificada com a democracia leva gentes de todas as idades e a esmagadora maioria dos intelectuais de nossa academia a clamar por um líder forte, que resolva sozinho os impasses que a convivência entre hierarquicamente iguais naturalmente impõe. Não preciso mencionar nomes, todos sabem a quem me refiro. Não se dão conta, porém, de que a corrupção é resultado não da democracia, mas da confiança passada em pais condutores, em guias oniscientes, além de homens comuns. À sombra deles, tudo se corrompe, pois na família com pai onipotente, ganha quem melhor o adular. 

Talvez nossa pouca fé em Deus, manifestada tanto pelo misticismo quanto pelo fanatismo, nos faça crer em deuses de carne e osso. Perante Deus, somos todos homens. Perante os homens, deveríamos deixar de lado uma característica verdadeiramente infantil: a de crer demais em si mesmo ou em quem quer que seja. Somos todos um pouco polimorfos perversos e um pouco crentes no amanhã. Não há nenhum mal em si tanto numa coisa quanto na outra. O mal está em desejarmos no imediato um amanhã nos dado não por nosso próprio esforço metódico, mas por quem irá nos reduzir a uma infância miserável. 
 

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