Uma jogada estremece o Brasil

19/09/2017 03:36 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Esqueça a Lava Jato e o império da corrupção. Temer, Lula, Joesley e Sérgio Moro perderam. Nenhum monstruoso escândalo, desses revelados por delação premiada, chega nem perto do que realmente nos interessa agora. O mundo quer saber: afinal, Jô é bandido ou inocente? Porque no Brasil nada é mais avassalador do que os dramas de uma partida de futebol. Vamos falar sério.

 

Era domingo. O clássico entre Corinthians e Vasco parecia correr para o zero a zero, até que houve aquele cruzamento aos 28 minutos do segundo tempo. A bola saiu da linha de fundo, pela ponta esquerda, sobrevoou a pequena área e, no limite do segundo poste da trave, mudou a vida de João Alves de Assis Silva, um paulistano negro, de 1,88m e 30 anos de idade, conhecido como Jô.

 

Do lançamento ao toque do centroavante na bola, são três segundos. Tempo suficiente para escrever um capítulo definitivo na biografia de um homem. O gol do jogador corintiano provocou um vendaval de revolta e histeria por todo o país. O pecado mortal de Jô foi ter usado o braço para mudar o placar da partida. Por causa do gol ilegal, ele foi chamado de bandido e comparado a Fernadinho Beira Mar.

 

Na exótica tentativa de uma abordagem mais sofisticada do caso, cronistas não perderam a chance de comparações com o quadro de degradação na política nacional. Para esses, no Brasil da ilegalidade consagrada, o atleta confirma que, sim, nosso caráter pervertido não tem cura. Desde que a bola tocou a rede até o momento em que escrevo, o massacre sobre o jogador é impiedoso.

 

Outra jogada, cinco meses atrás, acrescenta ao episódio doses de crueldade diabólica. Além de fazer um gol irregular, Jô é acusado de hipocrisia porque, em abril, se beneficiou de uma atitude ética do adversário, elogiado por ele mesmo. Jogando contra o São Paulo, livrou-se de um cartão amarelo depois que o zagueiro Rodrigo Caio, são-paulino, avisou o árbitro sobre a punição equivocada. Dessa vez, faltou ao corintiano o idêntico gesto de honestidade.

 

Com a alma do brasileiro em transe, até os deuses do futebol se perguntam: em casos assim, o jogador deve se denunciar, abrindo mão até da vitória, ou o árbitro está em campo para isso? Ouvi algumas vozes, uma minoria, defendendo que a obrigação de apontar o eventual erro é do juiz. Mas a repulsa dominante ao comportamento do jogador não deixa dúvida quanto à sua condenação inapelável.

 

Ética, dentro e fora dos gramados – é disso que se trata, afinal. Vale qualquer coisa para ganhar? Jô parece viver hoje o mesmo tipo de tragédia que desabou sobre um craque, depois de uma inocente jogada, no distante ano de 1976. A diferença é que o lance do passado ocorreu longe da bola e do campo de jogo, mais precisamente num comercial de TV para vender cigarros da marca Vila Rica.

 

O gol de mão cometido por Gerson, tricampeão com a mitológica seleção de 1970, foram palavras que, para ele, se tornariam malditas: Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também!. O slogan entrou para a história como a ilustração perfeita da nossa malandragem, a síntese de um tipo de indivíduo destinado a driblar qualquer regra por toda a eternidade. Nascia a Lei de Gerson.

 

Ao lado de expressões como “jeitinho brasileiro” e “sabe com quem está falando?”, a Lei de Gerson foi rapidamente capturada por sociólogos ávidos por teorias para decifrar o brasileiro. Ter seu nome associado a algo tão pesado levou o ídolo do futebol à depressão. De tão incomodado, passou a se recusar a tratar do assunto, sob qualquer hipótese.

 

Volto a Corinthians e Vasco. Até agora, o atacante que fez o gol ilegal se defende afirmando não saber em que parte de seu corpo a bola bateu. Mas, também para ele, o benefício da dúvida está sumariamente negado. Quer apenas levar vantagem. Não sei. O que me ocorre é o seguinte: um cara que venceu na vida jogando futebol, João Alves de Assis Silva, demasiadamente humano, como eu e você, também erra.

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