Nosso indispensável reacionário

17/09/2017 10:28 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Vivesse nos dias de hoje, escrevendo como escrevia em seu tempo, Nelson Rodrigues provavelmente seria caçado a pauladas. Bastaria um de seus textos sobre, por exemplo, Dom Hélder Câmara, para que fosse levado ao linchamento inapelável nas redes sociais. O inventor da modernidade no teatro brasileiro via no homem santo a síntese de tudo o que deplorava. O tratamento mais leve era chamar o religioso de “padre de passeata”.

Aliás, em suas crônicas sobram venenos e ironias para todas as passeatas da época. Para ele, não passavam de manifestações de boçalidade intelectual, para as quais o povo nunca era convidado. Segundo escreveu, não se via um operário nessas ocasiões festivas promovidas por universitários, artistas e pensadores da academia militante.

As opiniões do dramaturgo e escritor estavam na contramão do ideário de combate à ditadura militar, uma guerra na qual se engajou a ala progressista da Igreja Católica. Bater em Dom Hélder era tão estarrecedor quanto agredir uma criança indefesa. Um ato hediondo. Não para Nelson, um obstinado demolidor de unanimidades.

O teor de seus textos rendeu a ele inimigos por todos os lados. Nos dias atuais, seria tratado como um extremista de direita, um canalha fascista que, se visto num aeroporto ou num restaurante, certamente tomaria porrada desses que caçam reacionários 24 horas por dia. Sua sorte foi ter vindo ao mundo bem antes da internet.

Dizem que nunca houve tanto ódio, polarização e radicalismo quanto nos dias atuais. Não sei. Nossa tendência atávica à idealização do passado é uma maldição incurável. Sempre fomos bárbaros. Nosso altruísmo de vitrine não resiste à mais insignificante piscadela de uma vantagem pessoal. Uma simples consulta a qualquer contexto histórico revela a prevalência do comportamento primitivo.

A diferença inescapável para hoje, com o perdão da falta de originalidade, é a revolução do universo virtual. Pela internet, conquistamos todos os caminhos para atirar a esmo, numa vertigem fora de controle. Nelson Rodrigues seria alvo do mesmo ódio que sempre esteve na praça. A novidade estaria na rapidez, na quantidade de munição e na voracidade estimulada dos atiradores.

Odiado em vida, Nelson cresceu depois da morte. É caso único na cultura brasileira, como gênio do teatro e da literatura, a despeito do que pensam muitos professores dos cursos de letras nas universidades. A restrição é puramente ideológica. Além dos contos e romances, sua inigualável maestria literária pode ser conferida em livros de crônicas e memórias como A Cabra Vadia, O Óbvio Ululante, A Menina sem Estrela e O Reacionário.

Abra em qualquer página, de qualquer título que acabo de citar, e verá o que é a arte de escrever de verdade. Hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais, o rádio e a TV. Quase tudo e quase todos exalam abjeção. A internet só não entrou nessa lista porque, como sabemos, em 1968, isso ainda não existia. Nelson Rodrigues também foi um visionário.

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