A palavra inútil – na Globo e na vida

14/09/2017 02:14 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Um dia qualquer, em meados da década de 1990. Sobre um móvel, na sala do então diretor de jornalismo da TV Gazeta, Márcio Canuto, dispara o velho aparelho de telex. O papel começa a descer vagarosamente, revelando, a cada parágrafo, mais um comunicado da TV Globo para suas afiliadas. Eu era o chefe de redação.

Aquilo era uma rotina. Todos os dias, recebíamos a relação dos assuntos que estariam em pauta nos telejornais da rede. Pelo telex também chegavam solicitações de dados sobre algum assunto, convocações para encontros nacionais e pedidos para colaboração em reportagem que seria exibida em programas como o Fantástico ou o Globo Repórter.

Mas, naquele dia, o teor do comunicado era mais interessante. Tratava da qualidade do texto nas matérias produzidas tanto na rede quanto nas afiliadas. Era uma espécie de breve manual, com uma lista de termos e expressões que deveriam ser evitados. Mais do que isso, deveriam ser banidos. A justificativa para a recomendação era, de fato, indiscutível. Após duas ou três linhas com explicações, seguia-se a lista maldita.

O acidente deixou um rastro de destruição. Os bandidos estavam fortemente armados. A notícia caiu como uma bomba. No imposto de renda, o brasileiro deixa tudo pra última hora. A espera foi um teste de resistência. Para resolver o caso, vale o jeitinho brasileiro. Esses eram apenas alguns exemplos de uma imensa coleção de barbaridades que, segundo os editores que assinavam a mensagem, serviam apenas para empobrecer o texto.

No fim do século 19, Gustave Flaubert já sabia desses perigos que rondam a linguagem. Disposto a combater o mal, a seu modo, escreveu o desconcertante Dicionário de Ideias Feitas. Inspirado no clássico autor francês, o mineiro Fernando Sabino lançou, em 1952, o seu Lugares Comuns: as bobagens que a gente diz. Com outra pegada, o professor e crítico de arte Teixeira Coelho publicou, em 1991, Dicionário do Brasileiro de Bolso.

Os editores da Globo estavam certos, não há dúvida. Mas perderam a guerra. Nos telejornais da emissora e suas afiliadas, vemos o triunfo absoluto do clichê, da frase feita e do lugar-comum. É quase impossível assistir a uma reportagem sem que nossos ouvidos não sejam fuzilados com soluções textuais que nada significam. Chega a ser engraçado ver repórteres, cheios de ênfase e gravidade, cometer esse tipo de atentado contra a língua, sem dó nem piedade.

Mais de vinte anos depois daquele telex, despencou nosso padrão intelectual? Talvez. De todo modo, admita-se que o inimigo tem um poder desmedido. Uma força de atração infernal sobre o pobre redator. Um verdadeiro monstro. Ainda que um pouco mais de leitura possa ajudar, sempre estaremos com a faca no pescoço. Mas não podemos desistir. Como dizem os criativos repórteres no Globo Esporte, é vencer ou vencer! No mais, vida que segue.

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