O BRASIL E A CULTURA DO ESTUPRO: UMA INVENÇÃO DE 500 ANOS

31/05/2016 21:42 - Diálogos e Debate
Por Diálogos & Debate

          Gilberto Freyre, inegavelmente, foi um dos responsáveis pela criação de certos consensos que fundamentam a visão do povo brasileiro a respeito de si mesmo e da sua sociedade.

          Talvez, seu mais grave equívoco, tenha sido atribuir certa docilidade às relações escravistas, o que terminou por escamotear questões que resultariam num debate inevitável sobre a cultura do estupro, pouco questionada embora, amplamente nutrida em nosso país.

          Resgatamos aqui, que a miscigenação étnica foi e permanece sendo um dos aspectos mais interessantes da nossa cultura, contudo, os meios para que ela se forjasse, nos remetem a uma sociedade patriarcal e escravista, na qual o macho alfa, branco e ibérico, não conseguia conter os seus impulsos de visitar a senzala a certas horas da noite.

          Tais visitas se consumavam em relações sexuais foçadas, estupros, naturalizados e assimilados, pois, que a vítima não era apenas um personagem indefeso e vulnerável e sim, uma coisa, um objeto de seu algoz e, sabemos, não é dado a ninguém o direito de questionar o que o sujeito faz com aquilo que lhe pertence.

          É sempre bom lembrar que o protagonista do enredo acima saciava seus desejos inconfessáveis ao tempo em que se enojava da sua própria atitude, pois, até reconhecia na mulher negra determinadas qualidades, mas não conseguia atribuir a ela um caráter humano. Logo, tais qualidades a ela atribuídas, eram as mesmas associadas a um animal.

          Ora, ninguém se envergonha de atribuir beleza a um cavalo, contudo, seria degradante admitir desejos sexuais pelo equino...

          Na esteira de tais relações embrionárias, semeou-se determinadas relações sociais nas quais a mulher, particularmente, as negras, passaram a ser historicamente vistas como objeto de desejo a ser possuído na condição de seres inferiores e reificados, que como tal, deveriam se encaixar perfeitamente ao estereótipo delineado pelo elemento masculino, que se impõe como sujeito balizador das relações amplamente aceitas e sedimentadas.

          É nesse ambiente que grande parte da sociedade, não só naturaliza como se orgulha e ridiculariza a ideia da mulher frágil sendo possuída pelo elemento masculino, esperto, viril e dominante.

          Como transformar tais relações? A resposta para a pergunta pressupõe amplas discussões acerca do papel das instituições no interior da nossa sociedade e sobre o papel dos indivíduos no núcleo dessas instituições, uma vez que entendemos que a ampliação dos elementos coercitivos para os casos de estupro, ainda que seja imperativo, não modificará consensos historicamente criados e cristalizados no imaginário coletivo de uma sociedade ao longo de seus 500 anos.

          É de Gramsci a ideia segundo a qual os indivíduos portadores de uma energia transformadora, podem atuar dentro das instituições como aquele sujeito que poeticamente se viu “no centro da própria engrenagem para ser a contra-mola que resiste.”

          É essa relativa independência dos indivíduos em relação as instituições em que estão inseridos, que legitima a escola enquanto espaço capaz de se reinventar em torno da construção de uma nova cultura, plural e emancipadora, edificada em relações autenticamente humanas. E é aí, que nos vemos diante da inevitabilidade da discussão de gênero.

          Não custa lembrar que, hoje, muitas das pessoas que manifestam a sua indignação com o estupro bárbaro no Rio de Janeiro, amplamente veiculado pela mídia, são os mesmos que fazem apologia a discursos ultra machistas personificados em figuras como Jair Bolsonaro.

          Até quando ficaremos reféns da espetacularização midiática para que, enfim, possamos transformar em objeto de debate aquilo que se repete cotidianamente na nossa sociedade?

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