Clodoaldo Souza (Negro Blul), 22 anos foi assassinado em 2006 na matança de nova Brasília, em Salvador Bahia e Hamilton Borges um dos líderes do Movimento Reaja ou Será Mort@ escreve a carta...
CARTA A NEGRO BLUL - ANO 09
“Vagabundo, a trilha é um precipício, tenso, o melhor
Pois desisti da minha família e numa luta mais difícil
Quero salvar o mundo
“A frustração vai ser menor.”
Emicida
Salve Negro Blul, meu parceiro!
Essa é a nona carta que escrevo me dirigindo a você com amor e saudade. Com uma vontade de justiça que me eleva e uma tristeza em pensar que seu martírio não fez parar a sangria contra o nosso povo em nossas comunidades. Tenso Blul, aqui na Bahia tá tenso com a continuidade de uma lógica de segurança que mata. O governo é democrático, mas montou engrenagens que nos fazem ainda mais vulneráveis, uma democracia burguesa, em que os brancos são o centro da gestão e do poder. Você verá alguns negros pelas bordas, em locais sem poder de decisão ávidos por defender a casa grande. Muitos dos nossos aplaudem a falácia do “bandido bom é bandido morto”, o bandido negro morto, pois bandido branco ganha até nome em viaduto. O governador abriu as comportas da morte e nossa vida parece não ter nenhum valor, “vida nua, desprotegida”. Mata-se como se matava em 2006 em Nova Brasília, mata-se a céu aberto, em dia claro e se moscar na noite escura, ai já era. Os poderes de justiça se juntam e repetem o bordão lombrosiano que todos conhecemos “Tinha Passagem”, “Bem contra o Mal” e o pior é a cumplicidade constrangida. A Jornada da Reaja contra o genocídio e pela vida, completa 10 anos. Diziam que éramos uma onda mas nos tornamos um tsunami derrubando as teses covardes sobre nossa incapacidade de nos organizarmos com autonomia. Triste ver a cara pálida de quem colabora por um cargo ou projeto, quem não dura uma jornada, ridículo ver quem passou quase uma década nos combatendo querer andar na mesma estrada que nós, que somos maloqueiros e cuja tese (a das vilas, favelas, ruas e prisões) ganhou o mundo. Mas isso não nos afeta, só nos deixa alertas sobre as armadilhas do poder. Nós ainda lutamos contra este poder que nos submete, controla e mata. Buscamos alternativas de poder.
Mano, levaram sua vida no momento mais produtivo que você gozava e deixaram sua família esfacelada. Lembro do olhar de sua mãe naquele dia, em seu sepultamento, sua dor revirando todo nosso ódio, o desespero que ela imprimiu na voz quando falou de você, o quanto te amava . Vejo muitas mães, Blul, caminhando com a Reaja, sofrendo, chorando, mas lutando lado a lado, nos protegendo com sua majestosa presença. Acreditamos que só elas podem chamar o governador a uma outra racionalidade que não seja o do encarceramento e a morte. Somente elas podem fazê-lo refletir e recusar a escolha de ser aplaudido pelos oficiais brancos das corporações de segurança. Se o governador quer nos ouvir, que ouça as mães da Reaja, que fale com elas que são nosso comando.
A Rondesp executou mais de 15 jovens numa ação e o Governador Rui Costa aplaudiu o heroísmo de seus soldados, comparando-os a artilheiros na frente de um gol. Nossas vidas ficaram nesse lugar, sem valor, um jogo banal em que os poderosos movem peças em que só morrem negros de um lado e de outro. Em 190 anos da policia militar criada para combater Zeferina o governo foi lá no Cabula renovar sua sanha genocida.
Blul, nesse ano em seu tributo além de Kleber Álvaro, Ricardo e Ênio Matos, além de Jackson Borges e Evangivaldo, além de Aurina e Robson, além de Diego, Jean, Marcio, Tereza e Cláudia, lembraremos de Claúdia, Davi Fiuza, Jean Carlos, Sérgio Ricardo, Luís Ricardo, Davi Moraes e Rildevan. Vamos fazer um ato em memória dos meninos abatidos na Vila Moisés/Estrada das Barreiras no Cabula e no local onde o governo, com sua política de segurança pública que mata negros, criou de morte e tortura, transformaremos num espaço de vida.
Sim Blul, os grupos de extermínio tiraram os capuzes e máscaras e atuam abertamente com o aval do Estado, ceifando nossas vidas e exibindo nossos corpos em redes sociais. Peço licença, meu Mano Blul para falar das mães e chamar seus nomes: Rute Fiuza, Lucy, Mirian, Rose, Meire, Cleonice, Marcela, Augusta, Maria, Elba, Alba, Carla, Gabriela, Fernanda, Rosana , Neinha, Ajurimar Ciganos, Dona Marina, Maria de Fátima, Nega e tantas outras, mas também Lázaro e Tony, homens que seguem buscando justiça, transformando uma dor profunda em luta, a luta que é a Reaja.
A Reaja, Blul, continua sendo comandada por mulheres. Doutora Andreia mandou um salve, ela saiu aqui, temos atendimento pra fazer: saúde, alimentos, trabalho, conforto, nosso povo precisa de tudo e onde nós vamos são as mulheres que articulam isso. Sempre foi, não tem como esquecer sua mãe, olhando nos meus olhos e depositando aquelas flores em seu túmulo.
Vai Blul, descansa meu parceiro, não conseguimos, com toda pressão que fizemos, determinar a autoria de sua morte. Vai ficar para sempre decidido pela justiça como grupo de extermínio, sem voz, sem rosto, sem uma identidade. Mas cá pra nós, quem está à vontade para circular num carro preto, com máscaras e armas de grosso calibre e atirar e sumir na fumaça nessa Bahia bélica que nos elimina? Nós sabemos, né Blul?
Desculpa aí, Blul, estou com uns corres pra fazer, garantindo a ação cultural em seu nome. Já não escrevo com a poesia e a esperança que me moviam há alguns anos, mas continuo junto com o bonde da Reaja fortalecido pelos mortos e mortas, pelas mães, pelas irmãs, pelas companheiras, pelas filhas, pelas avós e a Reaja se mantem indignada, sem holofote e purpurina, sem o glamour que muitos tem buscado diante do nosso sangue negro derramado há tanto tempo. Somos mesmo forjadas e forjados pelo barro da favela, pelo ferro das cadeias, pela lágrima e pelo útero de mulheres pretas. Não queremos unidade de qualquer jeito e nem qualquer unidade, estamos buscando quem quer nos fortalecer independente das luzes. Continuamos preocupadas e preocupados com a nossa gente. Estamos, meu mano, articulando gente do Brasil inteiro, nos tornamos filiadas a quarta internacional pan-africanista e isso é sério pra nós. “Ligamos nossas lutas”, como dito por nossa irmã Christen Smith.
Bom, obrigado Negro Blul por ser farol e ligação entre nossos mundos. Descansa Blul, você já sabe que não vamos parar! Nós seguiremos lutando.
Hamilton Borges dos Santos (Walê)
Direto da Cidade Túmulo, Salvador.