E o Quilombo dos Palmares está se desfazendo pela epidemia do descaso, do abandono...

21/01/2013 15:18 - Raízes da África
Por Arisia Barros

A crônica de Cristina Rocha, pedagoga, especialista em saúde pública nos remete ao silêncio contrito e estrutural em relação a urgente necessidade de restruturação do Parque Memorial Quilombo dos Palmares , situado na Serra da Barriga em Alagoas. A Serra da Barriga gestou a primeira República Negra e Livre da América Latina. O Quilombo dos Palmares é patrimônio único. É a história escrita em terras sagradas.
O Parque está definhando e ficamos assistindo a tudo impassíveis. Não há movimento ou mobilizações. Sabemos ou um dia saberemos o que é controle social? Quem sabe?
O Parque é o retrato vivo do que chamamos racismo institucional. Segue a crônica de Cristina:


Dar um ou dois passos pode ser pouco quando é longo o caminho...


Deparei-me, nesta semana, com uma publicação de 75 anos atrás, de historiador alagoano, que, curiosamente, trata do turismo em Alagoas. Turismo... Tão atual, tão presente. Alvo de promessas e desejos de governos e população: a salvação, a saída, a solução para antigos e persistentes problemas.
Por incrível coincidência, no último final de semana vivi na plenitude o turistear aqui por estes lados. Em União dos Palmares, num hotel parque, belíssimo, por sinal, mas de atendimento sofrível (o que não é novidade ...). O pacote incluía uma visita à Serra da Barriga, ao Quilombo dos Palmares.
Enchi-me de expectativa. As situações que envolvem personagens e fatos da história e da cultura, comumente me fazem “viajar” e mergulhar de cabeça no clima... E lá fomos nós. O primeiro impacto é o acesso. Uma estrada de terra na maior parte de sua extensão. Aí pensei com meus botões: “mas peraí, não foi agora, recente, o dia da ‘consciência negra’, aqui comemorado?” E até pude perceber “resquícios” de cuidados nos arbustos desbastados às margens de alguns pedaços da estrada.
E lá chegamos nós... Gente de várias idades, homens, mulheres, meninos, meninas... E o nosso pretenso guia faz uma breve preleção, numa síntese bem canhestra do monumento. Constrangida e até envergonhada ouvi a preleção daquele jovem (bem ‘parecido’, mas de uma cruel superficialidade) sobre aquele lugar sagrado. Falava meio sem jeito, meio irônico e até fazia certa chacota dos fatos que tentava resumir para os incautos ouvintes...
Numa, dentre as várias placas comemorativas (e há muitas por lá, com registros e nomes de instituições e autoridades), chamou-me a atenção uma frase que tem por assinatura Afro de Amoroso Brasil, da Fundação Cultural Zumbi: “Este é um solo sagrado, onde foi acesa a chama da liberdade. Reverenciem-no ao pisá-lo, pois aqui repousam heróis do passado”. Esforço louvável para transportar os visitantes a um presumível santuário ou mesmo a um templo onde se pretende honrar e glorificar a liberdade. É certo que há vestígios disso por todos os lados, mas não há o clima...
E aí, não consigo deixar de pensar na visita que fiz a Chascona, uma das casas de Neruda, em Santiago do Chile. Tudo ali nos remete ao personagem, cada ambiente, cada objeto. A fala do guia, o tom de voz, a certeza que ele carrega ao descrever cada cômodo, vinculando-o a fatos da vida do grande poeta. Tudo nos transporta a Neruda. No escritório, sua presença é quase física. Ele estava ali. Senti isso.
Eis a grande diferença. Ali, no Quilombo dos Palmares, não há clima. Não há sensações. Não há a presença extraordinária dos personagens que ali se entrincheiraram, resistiram, pelejaram. Não se respira o espírito de luta e defesa da liberdade e da igualdade. Descaso, abandono, desde a faixa corroída que dá as boas vindas. Placas desgastadas destacam heróis e fatos, demarcam espaços da vida e cultura do povo pretensamente homenageado. Inexplicável o abandono da história, da nossa história... E, ao buscar minhas próprias explicações para tanto desamparo, não resisti à lembrança de uma famosa e velha polêmica: seria o mosquito da dengue da União, do estado ou do município? ...enquanto isso, a população vivia uma epidemia da doença.
E o Quilombo dos Palmares está se desfazendo pela epidemia do descaso, do abandono... Uma quase certeza da incerteza quanto ao destino deste sítio histórico como outros. E me vem a visão de Penedo, Piranhas, Porto Calvo, Marechal... E me vem a certeza de que o Quilombo dos Palmares precisa de urgentes cuidados. Não um cuidar qualquer, mas um cuidado que, como dito por Leonardo Boff, é “mais que um ato; é uma atitude [...] abrange mais que um momento de atenção. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo [...]”.
E somente essa nova atitude nos empurraria ao longo do caminho para um destino turístico qualificado que deve se abrir para mais além da oferta isolada dos presentes generosos da natureza que nos envolve, valorando concreta, responsável e criativamente outros bens e tesouros fartos em história e cultura. A Serra da Barriga clama por ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo...

* Cristina Rocha *É pedagoga, especialista em saúde pública.

Fonte:://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/acervo.php
 

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