O Azar Existe?

25/12/2012 10:07 - Psicologia - Gerson Alves
Por Gérson Alves da Silva Jr.
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Aqueles que leem horóscopos, aqueles que entregam tudo nas mãos de Deus ou dos Deuses como forma de se eximir da responsabilidade de planejar suas vidas, aconselho que não continuem a leitura e evitem maiores desconfortos.

Cresci ouvindo meu pai falar que castigo quando dá em gente é pior que em bicho. Com esta frase ele tentava deixar claro que quando uma coisa ruim acontece, muitas vezes, uma sequência de infortúnios se segue. Alguns atribuem a isso o nome de azar ou destino de má sorte. Muita gente acredita mesmo que alguns acontecimentos de sua vida estavam programados para ocorrer independente de qualquer coisa. Neste sentimento, de que existe um plano maior dirigindo fatos e acontecimentos na vida das pessoas, é que muitos acreditam em escolhidos e azarados. Outros são mais sutis e acreditam apenas em tempo de azar e tempo de sorte. Mas, o que uma psicologia de caráter científico teria a dizer sobre isso?

Acreditar em um plano superior dirigindo e controlando a vida das pessoas é reconfortante. Minimiza nossas preocupações com relação à morte, nos apresenta uma justificativa para acontecimentos complexos do nosso cotidiano, nos dá a sensação de que estamos seguros e que mesmo os infortúnios são resultantes de castigos para nossa correção e retratação (ou de avisos para tomarmos a direção correta). Pensar a vida sem atribuir controle a uma entidade maior nos deixa inseguros, soltos, com muitas preocupações, com uma sensação de finitude e de pequenez. Não é nada reforçador retirar a ideia de Deus ou Deuses enquanto controladores ou planejadores de nossas vidas.

Na letra do samba enredo composto por João Sérgio para União da Ilha em 1978, encontramos uma narrativa em que se pergunta sobre o destino para a cigana, em sonhos, em bola de cristal, em jogo de búzios e para cartomante. Mas no final o autor argumenta da seguinte forma: “Como será o amanhã? Responda quem puder! O que irá me acontecer? O meu destino será como Deus quiser!” Interessante é perceber que quando o autor finaliza com o “destino será como Deus quiser”, ele tenta produzir a ideia de que entregamos o que irá nos acontecer a algo seguro, no sentido de que podemos ficar tranquilos e não mais nos preocuparmos. Ora, até mesmo os religiosos acreditam que as mãos de Deus não fazem nada quando as mãos dos homens não trabalham.

Na realidade, se observarmos bem, a cigana, os sonhos, a bola de cristal, o jogo de búzios e a cartomante são apenas instrumentos humanos que foram criados no passado para ter acesso a este pretenso planejamento celestial e assim gerar a sensação de segurança. Ou seja, descartar estes recursos apenas deixa os humanos sem acesso ao hipotético plano celestial. Mas, existe ou não esse plano celestial previamente traçado?

Para religiões de caráter animista o destino pode ser acessado, portanto ele é uma realidade inquestionável. Para os judeus, cristãos e muitos outros religiosos existe um plano de Deus, mas não cabe ao homem investigá-lo no sentido de procurar saber com antecedência os acontecimentos. Na filosofia judaico-cristã seria uma heresia tentar sondar os planos de Deus, pois isto se configuraria como uma tentativa de alterar ou de se meter no planejamento de algo muito superior a nós (estaríamos tentando nos igualar a Deus). Por essa razão, para os judeus e cristãos devemos apenas exercitar a aceitação do que está previamente traçado pelo divino.

Como judeus e cristãos não acreditam em investigação do destino e nem em forças capazes de alterar os planos de Deus, as pessoas muito bem poderiam ficar tranquilas e saber que não são responsáveis por nada. Quando trabalhava no Presídio Ciridião Durval, no ano de 2003 entrevistei um homem de quase 50 anos que em sua ficha contava-se mais de 40 homicídios, mas, para minha surpresa, quando o questionei sobre as mortes ele afirmou categoricamente que nunca havia matado ninguém. Achei estranha a sua resposta e perguntei: “como assim?” Ele então explicou: “Doutor, nenhum homem tem o poder de matar outro, a única pessoa capaz de decidir se uma pessoa vive ou morre é Deus, pois tudo já está traçado”. Perguntei então como ele me explicava sua ficha e as armas que indicavam que ele havia utilizado para tirar a vida de outras pessoas. Ele de modo muito sério disse: “Doutor, já aconteceu d´eu descarregar a arma na cabeça de uma pessoa e ela não morrer! O que eu faço é o encaminhamento do sujeito! Eu atiro! Se for a hora e o dia dele morrer ele morre, mas se for a vontade de Deus ele vive! Eu apenas encaminho, pois não tenho esse poder de tirar a vida de ninguém”. Embora possa parecer uma piada, a história é verdadeira e o autor acreditava piamente na narrativa que fazia, do mesmo modo que muitos acreditam absolutamente no que estão falando quando dizem: “tudo é conforme a vontade de Deus”.

Este assunto pode parecer não ter importância dentro de uma discussão sobre a existência ou não do azar e da sorte, mas ele na verdade é tema fundante. Pois, azar e sorte, para quem acredita, não são processos ao acaso, são resultados de um plano superior sobrenatural. Quando estudei teologia aprendi que a liberdade ou livre arbítrio é um problema para a onipotência divina. No momento que admitimos que as pessoas são livres para decidirem sobre suas vidas, automaticamente estamos anulando a possibilidade das coisas serem simplesmente como Deus quer. Para Deus ser onipotente ele precisa ser ilimitado, ele precisa poder tudo. Deus deixa de poder tudo quando admitimos que uma pessoa pode escolher livremente sobre suas ações, visto que ao escolher livremente Deus não poderia interferir. Admitir a liberdade acaba com a onipotência divina. É como admitir que Deus poderia fazer uma pedra que ele não poderá carregar. Se dissermos que ele não pode fazer essa pedra ele já está deixando de ser onipotente, mas se dissermos que ele pode fazer, ele se tornará onipotente do mesmo modo, pois não poderá com a pedra.

Aurélio Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) resolveu o problema da onipotência divina negando a liberdade humana. Passou a defender a doutrina da predestinação das almas e daí a Igreja durante toda a Idade Média passou a trabalhar com as pessoas a aceitação de sua condição predestinada pelo divino. Quem é rei nunca perde a majestade, diz a frase medieval, mas a mesma é uma forma de afirmar que existe um plano superior para o que acontece ou deixa de acontecer. Se um rei perder a majestade é porque este nunca foi predestinado a ser rei, não estava nos planos divinos.

Felizmente propostas diferentes desta surgiram e podemos ver um bom trabalho na obra de Nicolau Maquiavel (1469-1527 d.C.), quando o mesmo afirma que para não anularmos por completo o livre arbítrio entreguemos 50% das coisas que acontecem ao destino e os outros 50% as nossas escolhas. Todavia, fiquemos cientes de que o religioso que admite a possibilidade de alterar ou interferir no seu destino está admitindo a possibilidade de alterar o próprio plano de Deus. E embora muita gente resolva esse problema afirmando que Deus apenas quer uma confirmação (da escolha do bem), um Deus que precisa de confirmação não é onisciente e muito menos onipotente.

Maquiavel compara o destino a um homem que constrói sua casa perto de um rio caudaloso. Afirma ele que este homem nada pode fazer contra o rio, nem prever cheias e inundações, mas mesmo assim o homem pode ser prudente. A prudência do homem desviará seus esforços não para o rio, mas para a construção de diques e canais, além do fortalecimento das estruturas da casa. O rio então encherá e ficará violento, entretanto os canais e os diques desviarão e conterão as águas atenuando assim os efeitos da catástrofe. Do mesmo modo devemos ser, independente da existência ou não de um destino, devemos construir diques e canais para nossas vidas, além de fortalecer nossas edificações, para que quando o tempo ruim chegue possamos minimizar o impacto deste em nossas vidas. Assim evitamos uma sequência de coisas ruins e faremos com que o castigo dos bichos seja pior que os nossos. Uma sequência de coisas ruins se segue quando não nos preparamos e precavemos para as cheias dos rios da vida. Na vida estamos sempre na beira de um rio caudaloso, cabe a nós construirmos os diques e os canais.

Mas, o destino, ele existe ou não? O destino como planejamento de um ser superior tende cada vez mais a ser descartado. Sabemos que a ideia de plano superior, na verdade, é uma ideia cômoda para as pessoas. Retira delas a responsabilidade da própria vida. Saber que eu e minha condição existencial, o lugar que nasço, a formação que tive e as pessoas que me articulo é que definem a sucessão dos fatos de minha vida é muito pesado para a maioria das pessoas. É melhor o bom e velho argumento de se posicionar como inocente e incapaz, atribuindo a uma força misteriosa o comando de tudo, pois deste modo o irresponsável não precisará ter o trabalho de analisar, planejar e lutar pela construção do que é e de um mundo melhor.

Muita gente até leva a vida sem precisar trabalhar duro, apenas alimentando nos demais essa crença reconfortante de que existe um grande organizador ou planejador de nossas vidas. Alguns se colocam como escolhidos por esse plano, outros como profetas, outros como atravessadores e guias. Assim como era no princípio, agora e sempre, aqueles que tentam apresentar a vida como resultado de nossas ações serão crucificados. Enquanto aqueles que alimentam a ideia de um plano maior recebem dízimos e isenções fiscais, além de venderem muitos DVD´s, shows e programas de televisão.

É muito confortável pensar que você encontrou sua cara metade, ou pensar que ela existe e que você irá encontrá-la. Do mesmo modo que é confortável, depois que um relacionamento não dar certo, dizer para si que esse ainda não é o homem da sua vida ou a mulher do seu destino. Difícil mesmo é analisar uma relação e entender que amor não é resultado de almas gêmeas. Amor é uma construção que fazemos todo dia. Amor é planejamento conjunto. Amor é uma série de comportamentos complexos que nem sempre envolve realização, mas envolve a certeza de que as chances de sobrevivência e a possibilidade de construir para si e para os filhos são maiores quando nos articulamos com o outro.

A vida não é fantástica porque acreditamos na magia ou no sobrenatural. A vida é fantástica porque tudo depende de muita luta, esforço, trabalho e estudo. Não precisamos de fadas no jardim para vermos a beleza dos pássaros e das flores. O maior Deus de todos os homens não é chamado de Javeh ou Jeová, muito menos de Tupã ou Alá. O maior Deus se chama coerência. Qualquer profeta ou dita divindade que tenha algum dia atraído e encantado as pessoas não merece reconhecimento se não for coerente. A coerência liberta verdadeiramente os homens da ideia de azar, destino ou má sorte e os torna capazes de ver suas vidas a partir da conjuntura histórica. Ou seja, como um ser resultante de contingências.

Mas, se ainda assim você acredita no azar e ninguém te tira da cabeça que existe alguma energia que determina sorte ou infortúnios simplesmente porque você sente que todos tocam mais nas suas costas depois que você toma muito sol na praia, ou porque percebe que todo mundo pisa em seu dedo quando a unha está encravada, fique calmo, temos explicações melhores. Não é a unha encravada que atrai as pisadas, como também não são as costas queimadas que atraem os toques como se energias ruins atraíssem coisas ruins formando uma maré de azar. Na verdade, as pessoas estão tocando nos seus dedos e nas suas costas constantemente, mas como a consequência não é dolorosa você não discrimina do mesmo modo. Quando então as costas ou os dedos estão mais sensíveis, pelo sol e pela unha encravada, a consequência do toque é ampliada e assim percebemos melhor todos os toques que nos fazem. Do mesmo modo são as demais coisas da vida, estamos constantemente recebendo toques e pisadas que não nos machucam, mas no momento que algo nos inflama passamos a discriminar melhor certos acontecimentos da vida e podemos fazer uma atribuição errada imaginando que alguma força maior coordena o processo.

Essas falsas atribuições foram estudadas por Skinner e em 1953 ele publicou uma obra chamada Ciência e Comportamento Humano que merece apreciação. Lá ele chamou essas falsas atribuições de comportamentos supersticiosos e demonstrou por meio de experimentos como os mesmos são formados. Colocava pombos para serem recompensados em intervalos de tempo programado e independente do que eles fizessem eles receberiam alimentos no horário predeterminado. Mas, uma quantidade considerável de pombos passaram a desenvolver comportamentos ritualísticos como se “acreditassem” que as recompensas viessem em função destes padrões comportamentais. A vida é assim, algumas coisas acontecem na natureza independente de nossa vontade ou poder de interferência, Dawkins (2003) em O Capelão do Diabo, aborda muito bem sobre este tema. Pulinhos nas ondas do mar, se vestir de branco, tomar banhos de pipoca ou defumações com cachimbos de angico, não irão mudar o curso das águas do rio da vida. Resta-nos, portanto, construirmos os canais e os diques para minimizarmos os estragos. O trabalho e o planejamento de nossas ações é o caminho para essa construção.

Maquiavel escreveu que a sorte é como as mulheres, sempre preferem os mais jovens e os que as agarram com mais força. Escreveu também que a sorte assim como as mulheres muda de opinião a qualquer momento e abandona aqueles que lhes foram amáveis em outro momento, sem se importar com o choro destes. Penso diferente de Maquiavel sobre as mulheres e em consequência também penso diferente sobre a sorte. Mulheres são pessoas e assim algumas exercitam o planejamento e a análise de suas vidas enquanto outras vivem de momentos e recompensas imediatas. Interessa-me apenas aquelas que planejam e são capazes de fazer análise. Pois estas últimas não causam ruínas elas constroem junto. Meu dever é ser planejador e trabalhador sempre, assim poderei envelhecer do lado de mulheres da mesma estirpe que a minha com a certeza de que serei sempre sedutor e apaixonante mesmo em idade avançada. As coisas que nos aproximamos e as pessoas que nos juntamos devem ser muito bem analisadas, pois temos um peso considerável por meio do planejamento de nossas ações e do exercício de nossa disciplina para termos “sorte” duradoura ou temporária. Você então tem peso para determinar o tipo de “sorte” que terá.

A vida é como um jogo de xadrez que exige muita concentração e planejamento. Uma jogada errada, basta uma, e seu jogo poderá ficar perdido. Não será culpa de ninguém e de nada. Existem processos históricos e condições materiais que nos empurram com muita força para determinadas direções, mas planejamento dentro das condições que estão postas no tabuleiro são a chave para a vitória. Quanto ao azar, ao destino de má sorte ou um plano superior, não conte com isso. Existem aqueles que acreditam que as coisas acontecem, outros que esperam as coisas acontecerem. Seja você o que faz as coisas acontecerem dentro do seu tabuleiro de xadrez.

Assim eu analiso assim eu conto pra vocês!
 

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