Eu vi o menino dormindo ao Deus dará, dentro de um short azul, uma camisa branca e um boné vestindo os cabelos carapinhas da ação ardida do sol das 10 horas da manhã.
Dormia com o rosto crispado pela pobreza, agarrando em um das mãos um cachimbo para uso de droga, na outra um terço. No sono do menino presenciamos a peleja entre Deus e o diabo.
Eu vi o menino dormindo às 10 horas da manhã, ao Deus dará , numa calçada qualquer de um bairro nobre da cidade de Maceió, uma capital que nem tão pobre é, mas seu povo disputa a tapas e com armas de todas as cores e calibres, as migalhas da miséria como reflexo da ausência de políticas públicas.. O menino era um desses que a gente nem percebe de tão normal que já é vê-los na rua. Naturalizamos em nossa alma necrosada pela indiferença a miséria de tantos e muitos. Meninos e meninas pretas, então...
O menino que dormia um sono entrecortado de incertezas tinha a pele preta. A mão esquerda do menino de pele preta se agarrava ferozmente a um terço, como a proteger-se do rosário de nada ser. O menino de pele preta que se agarrava a um terço como a rogar piedade por morar em ruas descobertas de proteção, partilhava de angústia e sofrimento adulterizados, já na infância.
A ação do menino em agarra-se a um terço enquanto dormia talvez viesse como lembrança de ensinamentos familiares. Talvez, um dia, o menino tenha freqüentado a crença da família e descoberto o terço, mas aí o crack o descobriu e passou a ser o alimento do corpo. O espírito, entretanto, ainda, agarrava-se ao terço como a suplicar por salvação.
Porque vagam pelas ruas meninos que deveriam estar na escola, no conforto do seio familiar?
O menino tem a rua como residência. Na rua encontrou o crack, mas, como um desses grandes mistérios de vida, o menino que dormia às 10 horas da manhã embaixo de um sol a pino,com a pele encardida pela indiferença humana tem fé.
A fé dos pequeninos.
Piedade, Senhor. Tende Piedade!

Raízes da África