Dois Pesos, Duas Medidas

08/01/2010 14:04 - Raízes da África
Por Arísia Barros

Um exercício interessante para conhecer melhor a dinâmica das relações raciais no Brasil pode ser feito a partir do cruzamento de trajetórias e experiências distintas entre negros e brancos no trato com o Estado, principalmente, se forem de classes sociais diferentes.
A primeira experiência que sugiro é a leitura da sentença onde a Magistrada Geiza Diniz de Brasília absolveu o estudante universitário Marcelo Valle, branco, de classe média, acusado de racismo. Posteriormente, o Ministério Público recorreu da sentença e o estudante foi considerado culpado pelas acusações, em segunda instância, no caso conhecido como Marcelo Valle. Ele costumava se referir aos estudantes negros cotistas como “macacos”, “bosta” e dizia que eles roubavam as pessoas nas ruas e agora estariam roubando vagas nas universidades.
Uma experiência completamente diferente pode ser vista no documentário Justiça (2004), de Maria Augusta Ramos, que mostra o dia-dia do sistema penal no Rio de Janeiro. A cineasta acompanha interrogatórios, julgamentos e cenas da vida cotidiana de jovens negros moradores de favelas acusados de crimes como furto, roubo ou tráfico de drogas. Desde a instrução dos processos até a decisão final, fica nítido o caráter austero e simplório com o qual os magistrados definem o futuro das pessoas. Não se percebe ao longo do filme nenhum exercício de alteridade ou mesmo a disposição para ouvir as narrativas dos acusados, como se suas histórias fossem sempre as mesmas. Além disso, os mecanismos institucionais criados para garantir a ampla defesa, quando não eram ignorados eram utilizados de modo cerimonial.
Por outro lado, no caso Marcelo Valle, analisado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a Juíza chega a uma conclusão decisiva para a reflexão que proponho:
“É temerário que o juiz se abstenha de levar em consideração tais aspectos da psicologia criminal que, aliás, se tornou uma disciplina de muitos cursos de direito. O juiz de primeira instância tem contato direto com o acusado e todas as testemunhas e, assim sendo, pode concluir, como ora o faço, que o acusado Marcelo não é uma pessoa racista, mas sim um adolescente portador de transtorno emocional, que viveu toda sua vida sem uma orientação masculina, tendo uma mãe portadora de transtorno psiquiátrico e vivendo ora com ela, ora com a avó.”
O argumento citado não deixa dúvidas, existem dois tipos de atendimento judiciário no Brasil, um privilegiado e voltado para a classe média branca – já que os ricos parecem seguir inimputáveis – e busca compreender as origens do comportamento criminoso, as vulnerabilidades que os acusados de crimes estão suscetíveis ao longo de suas vidas e o risco que uma pena poderia causar para o futuro de um adolescente. No caso Marcelo Valle, a Juíza vai além, ao afirmar que o jovem seria vítima do movimento anti-racista em função da política de cotas para negros na UnB:
“‘Cotas geram ódio racial’ O presente processo é fruto de um ódio racial criado pelo sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.”
Enquanto isto, em Justiça o procedimento é padrão, ou seja, dois pesos, duas medidas.

 

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