A lei que prevê a colaboração premiada de acusados deveria ser revogada. Já escrevi sobre isso mais de uma vez neste blog. Esse mecanismo começou a ser usado na década de 1990 para crimes específicos – um modelo ainda bem longe do que viria ocorrer adiante. Na época, mesmo em debate no Legislativo, delação não era manchete e nem estava na pauta de juristas de boteco como este blogueiro.
Em 2002, o notório doleiro Alberto Youssef foi preso na Operação Banestado. Para se livrar das pesadas acusações, sem zoada, fechou acordo de colaboração com a Justiça para entregar tubarões. O caso teve um desfecho muito mal explicado e, até hoje, restam mais sombras do que claridade. Mas Youssef conseguiu o que queria.
O magistrado que se acertou com o doleiro para uma delação era Sergio Moro, ele mesmo, hoje senador da República. Moro não é quem é por obra da natureza. Mais de uma década depois, lá estava o juiz como o super-herói da Lava jato, a operação que levou a colaboração premiada ao estado da arte. Mil delatores queriam “contar tudo”.
E quem era um dos principais delatores na primeira fase da Lava Jato, apontado como decisivo para prisões em série e várias condenações? Alberto Youssef. Sim, um delator se livra das punições da lei, sai por aí cometendo novos crimes, é preso e... faz delação outra vez. E outra vez sai na boa. É a desmoralização do processo legal.
Vejam, Youssef era o delator de estimação de Sergio Moro. Como se pode confiar num mecanismo que permite tal extravagância? É evidente que a conduta de ambos, juiz e delator, insulta qualquer cartilha elementar sobre o ordenamento jurídico. O delator que volta ao crime não pode se beneficiar com sucessivas delações. Essa é demais.
A degradação geral da delação na Lava Jato decorre de uma lei sancionada pela presidente Dima Rousseff. Sob pressão das ruas e de um Congresso venal, Dilma assinou a Lei 12.850 em agosto de 2013, o ano em que as multidões tomaram as ruas do país inteiro. O ato representaria o fortalecimento no combate a organizações criminosas.
Deu tudo errado para o país. As consequências foram nefastas. A lei era o que faltava para o ataque sem precedentes contra o próprio governo e um grupo específico da política, no caso o PT. Meses depois, Moro começa a cavalgar sobre as novas regras da colaboração premiada. É quando ele reencontra Youssef, seu parça delator.
Sergio Moro esquartejou a nova lei como quis. Os exemplos são incontáveis. Mas basta o caso Antônio Palocci para atestar a falência dessa previsão legal. De tão imprestável, a delação do ex-ministro de Lula e Dilma foi anulada. Mas Moro não se conformou. A seis dias do primeiro turno em 2018, ele tirou o sigilo da peça pra ajudar Bolsonaro.
Agora, no julgamento de Jair Messias e demais acusados na tentativa de golpe de Estado, outra delação está na berlinda. É a do tenente-coronel Mauro Cid (foto). Ressalto que as provas nesse caso vão além do que o delator aponta. Mas a defesa dos acusados não está longe da razão ao contestar o teor do que o militar afirma no processo.
A postura do oficial foi errática ao longo dos meses. Não sei se ele fala a verdade, se conta mentiras ou se omite algo. Há lacunas relevantes. A mais grave é o relato sobre o dinheiro que ele teria entregado ao general Braga Netto. O enredo é frágil, cheio de brechas e soa inverossímil. Deve ser tomado como verdadeiro? Penso que não.
Bolsonaro deve ser condenado pela antologia de evidências de crime. Assim me parece diante de tudo o que veio a público. Mas, caso ficasse demonstrado que a delação de Mauro Cid é o coração da denúncia, não teria dúvida em defender a absolvição dos réus.
Reparem que em todos os casos de repercussão na esfera judicial, quando há colaboração premiada, a defesa reage em coro: “Tudo baseado na fala de um delator criminoso, sem credibilidade”. É uma estratégia óbvia de advogados? Sim, mas isso não apaga o fato de que há um histórico material nesse sentido. As alegações têm lógica.
Por isso, a lei que regulamentou o combate a organizações criminosas – num casuísmo político – precisa de revisão, e não é de hoje. Creio, no entanto, que o melhor seria a extinção dessa marmota. Ou, pelo menos, uma drástica restrição de seu alcance. Por aí.