Muito além da propaganda que vende “liberdade de escolha” e “acesso à CNH”, a proposta do Ministério dos Transportes para desobrigar o cidadão de frequentar autoescola é, na prática, um passo perigoso rumo à desregulamentação da formação de condutores no Brasil. É preciso dizer com todas as letras: transformar a formação teórica em um conteúdo opcional, oferecer instrução prática de forma autônoma e dispensar a estrutura pedagógica das escolas especializadas é institucionalizar o improviso como política pública. Sob o pretexto de combater o monopólio e reduzir custos, o governo propõe um atalho que desvaloriza a formação, precariza a preparação dos motoristas e, no fim das contas, pode custar caro à sociedade. O discurso oficial tenta convencer que a medida democratiza o acesso, mas o que está em jogo é algo mais profundo: a substituição da política de educação para o trânsito por um receituário liberal que aposta na autorresponsabilidade do cidadão, como se dirigir fosse um direito automático e não uma competência técnica com implicações coletivas.

Segundo os dados divulgados pelo próprio ministério, cerca de 20 milhões de brasileiros dirigem hoje sem habilitação, número alarmante que escancara o fracasso do Estado em garantir acesso ao direito, mas que não pode ser combatido com soluções improvisadas. Reduzir em até 80% o custo da CNH pode soar tentador, mas se isso vier à custa da qualidade, da segurança e do controle pedagógico, estaremos trocando a inclusão pela ilusão. Ao atacar as autoescolas sem oferecer uma política pública estruturada de formação, o governo comete um erro grave. Em vez de investir na ampliação de programas sociais, como a CNH Popular ou bolsas para alunos de baixa renda, opta por esvaziar a formação. O resultado é um modelo que legitima o jeitinho, empurra os mais pobres para soluções precarizadas e abandona qualquer noção de responsabilidade coletiva sobre o trânsito.

Nenhum país desenvolvido com preocupação real com segurança viária adota um modelo tão frouxo. Na França, jovens podem iniciar a prática com os pais, sim, mas somente após aulas teóricas e acompanhamento por instrutores credenciados, em um modelo híbrido e rigorosamente monitorado. Na Suécia, onde a obrigatoriedade de autoescolas é mais flexível, o processo exige simulações obrigatórias, módulos de risco e avaliações criteriosas. Nos Estados Unidos, estados mais permissivos convivem com índices alarmantes de acidentes envolvendo motoristas recém-habilitados. O Brasil, ao invés de seguir experiências bem-sucedidas, quer se transformar num laboratório da informalidade, lançando milhões de brasileiros a um modelo em que ensina-se quem quiser, aprende quem puder. Se for para adotar padrões internacionais, que sejam os de excelência e não os de omissão.

A proposta é vendida como ousada, mas o que se vê é um populismo mal disfarçado. A retórica da liberdade de escolha serve para encobrir a omissão do Estado e sua incapacidade de enfrentar o problema estrutural: a elitização da CNH. Em vez de promover acesso com qualidade, o governo prefere flexibilizar regras. É como dizer que a solução da educação brasileira é permitir que as pessoas façam o Enem sem passar pela escola. Renan Filho, herdeiro político de uma das oligarquias mais influentes do Nordeste, tenta posar de reformador liberal, mas o que entrega é uma medida improvisada que coloca em risco vidas humanas. E como sempre, o ônus recai sobre a maioria, enquanto os poucos continuam com seus filhos em autoescolas privadas, em carros automáticos e cursos completos de direção defensiva.

A proposta de desobrigar o cidadão de passar por autoescolas não é emancipadora, é irresponsável. Não se trata de combater o monopólio, mas de desmontar uma política pública. A solução para o problema da CNH não está em reduzir a formação a um vídeo no YouTube ou a uma aula avulsa com um instrutor informal, mas em garantir que todos, e não apenas os que podem pagar, tenham acesso a uma formação de qualidade. Educar para o trânsito é salvar vidas. Transformar isso em um produto desregulado é, no mínimo, um retrocesso. E no limite, uma tragédia anunciada.