O enredo é basicamente o mesmo: inconformado com o fim do relacionamento, homem ameaça mulher, que presta queixa contra ele na delegacia e, em alguns casos, consegue uma medida protetiva. As ameaças, em geral, são feitas “à luz do dia”, na presença de testemunhas e de forma “comprovada”, por meio de mensagens no WhatsApp, por exemplo.
Ana, Sofia, Maria, Helena, Eduarda... As personagens da vida real têm idades e nomes diversos, são de etnias, classes sociais e regiões diferentes, mas, não raras vezes, o final da história é o mesmo: mais um feminicídio. A crônica de uma morte – literalmente – anunciada.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 aponta que entre 2022 e 2023, cresceram no país todas as modalidades de violência contra mulheres (homicídio e feminicídio - consumados e tentados -, agressões no contexto de violência doméstica, ameaça, stalking, violência psicológica e estupro).
Especificamente em relação ao crime de ameaça, o aumento, no país, foi de 16,5% (778.921 registros) e 540.255 medidas protetivas de urgência foram concedidas, um aumento de 26,7%.
Em Alagoas, o crescimento foi ainda maior que a média nacional. O número de ameaças registradas passou de 6.075 para 8.025, um aumento de 32,1% e o número de medidas protetivas de urgência concedidas saltou de 1.817 para 3.806, um aumento de 109,5%.
Os números e o roteiro que quase sempre começa e termina do mesmo jeito, da ameaça ao assassinato, têm servido de base para discussões sobre possíveis mudanças na legislação referente ao crime de ameaça, no contexto da Lei Maria da Penha. Hoje, quando cometida no âmbito da violência doméstica contra a mulher, a intimidação é punida com detenção de, no máximo, seis meses.
Risco contínuo
Em entrevista ao CadaMinuto, a advogada criminalista Sandra Gomes, que é também ativista social, conversou sobre a atual legislação e as possibilidades de melhorar a proteção às mulheres. Ela afirmou que, no contexto da lei Maria da Penha, o crime de ameaça é tratado como uma forma de violência psicológica, “e a lei proporciona mecanismos específicos para proteger as vítimas e assegurar que os agressores sejam responsabilizados”.
Questionada sobre a possibilidade de prisão como forma de prevenção ao feminicídio, a advogada explicou que a prisão imediata no contexto da lei Maria da Penha não difere de outros crimes em outros contextos:
“Ela poderá ocorrer em situações de flagrante delito ou quando há risco contínuo para vítima, dando assim uma continuação no flagrante. Um exemplo disso poderia ser a quebra de medidas protetivas de urgência que porventura a vítima já tivesse deferidas em seu favor, a própria prisão em flagrante e a prisão preventiva. No entanto, é preciso dizer que o tempo de prisão vai depender da natureza do caso e das próprias decisões judiciais relacionadas à segurança da vítima, de seus familiares e testemunhas e a necessidade de garantir a ordem pública”.

A criminalista defende que, para evitar que uma ameaça real acabe se tornando um feminicídio e melhorar a proteção de todas as mulheres, a legislação e o próprio sistema de justiça podem e devem se beneficiar de várias mudanças e aprimoramentos.
“A Lei Maria da Penha já pode ser considerada um avanço significativo, mas infelizmente inúmeros desafios ainda persistem. E alguns exemplos de aprimoramento que eu poderia citar aqui seria a capacitação de profissionais, que é uma questão muito importante e que nós, dos movimentos feministas, batemos muito nessa tecla, treinar policiais, juízes e promotores para lidar com casos de violência doméstica de uma maneira mais eficaz e sensível e, principalmente, evitar a revitimização dessas mulheres”, pontuou.
Ainda citando exemplos de aprimoramentos, Sandra Gomes falou da necessidade de desenvolver sistemas de alertas para identificar casos de risco antes que eles se tornem graves; e garantir que as vítimas tenham acesso fácil e rápido a recursos como abrigo e assistência psicológica e jurídica, especialmente em casos de situações de emergência.
Em relação às medidas protetivas, a criminalista destacou que elas são ferramentas importantes para a proteção da violência doméstica e podem ser eficazes para prevenir feminicídios, mas poderiam ser ainda mais eficientes com a adoção, por exemplo, de procedimentos ágeis para lidar com as denúncias e as queixas, principalmente as de ameaça, garantindo que as vítimas recebam uma resposta rápida e adequada das autoridades.
“Potencialmente perigoso”
Do ponto de vista do olhar do legislador, o CadaMinuto conversou também com o deputado federal Alfredo Gaspar (União) que, juntamente com deputada Federal Sylvie Alves, é autor de um projeto de lei que pune com mais rigor o autor da ameaça.
Ele destacou que, embora se trate de um crime sério, a “ameaça” é tratada como fato menor pela legislação. “Quando criamos o projeto, foi analisando que os comportamentos violentos do criminoso geralmente começam com pequenos atos de intimidação ou abuso verbal antes de se tornarem mais graves, razão pela qual é extremamente importante tratar a ameaça como um comportamento sério e potencialmente perigoso”, defendeu o parlamentar.
Entre outros pontos, o PL 821/23 permite a decretação de prisão preventiva no caso de crime de ameaça cometido no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
“O texto altera o Código de Processo Penal, fazendo com que o crime de ameaça, mesmo sendo considerado de menor potencial ofensivo, quando inserido na esfera de violência doméstica e familiar, precisa urgentemente ser encarado como a ‘porta de entrada’ para o crime de feminicídio, impondo a prisão preventiva. Ele foi apensado a um projeto similar, o PL 4194/2019, e tramita na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania”, explicou Alfredo Gaspar.
Ele prosseguiu pontuando que a violência contra a mulher, em pleno século XXI, é uma epidemia que necessita de mudança cultural e “remédio amargo, como punições ainda mais severas, e medidas preventivas, conscientização coletiva e, caso exista a violência, penas exemplares”: “Vejo o Legislativo hoje com uma consciência maior dessas necessidades. E o meu papel como legislador tem sido lutar e cobrar para que essas pautas contra a violência que faz vítimas as mulheres sejam pautadas e aprovadas no Congresso Nacional”.

"Precursores do feminicídio”
A propósito, tramitam no Congresso Nacional algumas propostas voltadas ao tema. Na Câmara dos Deputados, uma delas é o Projeto de Lei 901/23, do deputado Benes Leocádio (União-RN), que altera o Código Penal, aumentando a pena para os crimes de ameaça no contexto da Lei Maria da Penha, para reclusão de seis meses a dois anos e multa.
Questionado sobre os impactos (ou não) de mudanças como essa, o deputado federal alagoano defendeu que elaborar uma legislação em uma temática tão crucial não é uma tarefa simples, requer discussões e aprimoramento.
“O projeto de lei em questão é apenas o pontapé inicial de algo que será melhorado. Qualquer iniciativa legislativa para desestimular a violência contra a mulher é sempre bem-vinda e necessária. É a oportunidade para buscarmos um freio nessa violência desumana”, completou.
Também tramita na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o Projeto de Lei 4266/23, da senadora Margareth Buzetti (PSD/MT), que agrava a pena do feminicídio dos atuais 12 a 30 anos para 20 a 40 anos de reclusão sem necessidade de qualificá-lo para aplicar penas mais rigorosas.
O projeto, do Senado, altera o Código Penal, a Lei das Contravenções Penais, a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes Hediondos e a Lei Maria da Penha.
A proposta prevê ainda outras medidas para coibir a violência contra a mulher, principalmente os crimes considerados “precursores do feminicídio", a exemplo do aumento das penas para casos de lesão corporal, crimes contra honra, ameaça e descumprimento de medidas protetivas, e o aumento (dos atuais 50% para 55%) do cumprimento mínimo da pena de feminicídio para a progressão de regime.

Foto da capa: Imagem ilustrativa/Internet










