A nova embalagem do poder e da grana

21/04/2024 02:54 - Blog do Celio Gomes
Por redação
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A família margarina na publicidade é hoje peça do folclore universal. Anunciantes e publicitários abraçaram a pauta da inclusão e da diversidade. Não importa o produto, todos adotaram a pluralidade no discurso comercial. Do dia pra noite, as mais diferentes marcas passaram a exaltar a maravilha das tribos, das minorias, dos excluídos. O bacana é a celebração da diferença e do respeito a todos. A grana descobriu a ética.

Em qualquer anúncio, a revolução da nova ordem pode ser conferida. O aparente engajamento aos novíssimos paradigmas acaba criando peças que resultam em algum incômodo. Os casos mais estranhos envolvem personalidades públicas, celebridades de ocasião e grandes nomes da arte. Ídolos admirados por milhões nos garantem que estão vendendo algo mais que a mercadoria. Vendem princípios morais.

Djamila Ribeiro, a intelectual do lugar de fala, escreve livros e assina colunas para denunciar o racismo e defender o “empoderamento da mulher negra”. Não é muito confortável vê-la desfilar esses valores num comercial para vender carro ao lado do animador de auditório Marcos Mion. É o que ela faz ao virar garota-propaganda de uma montadora de carros. “Dirigir é ser dona do próprio caminho”, ensina a professora.

A frase resume os valores de Djamila Ribeiro em sua trajetória vitoriosa – e cheia de obstáculos, sem dúvida. Mas, de repente, isso tudo é transfigurado num slogan para um gigante do mercado de automóveis. É evidente que ela tem todo o direito de fazer a propaganda. Mas é inescapável a sensação de uma certa trambicagem, bem de acordo, aliás, com a lógica da publicidade. O destino ao volante? Não dá. 

Quando 2024 chegou, Fernanda Montenegro surgiu na TV para festejar sua capacidade de “nascer de novo”. Era uma peça do Itaú. O filme usa imagens de suas personagens em clássicos como A Falecida, Tudo Bem e Eles não Usam Black-tie. Quanta coisa empacotada num panfleto comercial de um bruto campeão da bandalha financeira! O slogan é uma confissão: “Feito de futuro”. Banco rouba até o que ainda nem existe.    

Para quem é fã da gritaria de Elis Regina, o ano passado teve um momento especial. Maria Rita e a mãe cantaram juntas num comercial da Volkswagen (foto). A montadora financiou a ditadura militar no país, mas agora também participa da jornada por um mundo melhor. A peça comoveu gerações com uma pilantragem sobre Como Nossos Pais, de Belchior. A letra denuncia a caretice e o mercantilismo de artistas. Virou musiquinha para moças e rapazes sensíveis.     

“A gente sabe o que é ser brasileiro”. Quem nos avisa é Seu Jorge, num comercial de uma dessas bilionárias empresas de apostas esportivas. Com ele estão Ludmilla, Vinícius Junior e Thiaguinho. O anúncio, claro, é uma homenagem à negritude, embalada naquela criatividade que só os craques da publicidade dominam. Correr atrás. Nascer driblando tudo. A gente tenta de novo, e de novo. Sim, clichê rende fortunas. 

Ao som do funk eletrônico, o comercial da operadora de celular começa falando de um “provérbio africano”. Cara, a charlatanice do mundo do dinheiro não tem limite. É a Vivo vendendo o festival Lollapalooza sob um slogan que defende a “presença preta”, com imagens de favelas. É o mesmo festival flagrado mais de uma vez usando mão de obra escrava. É o ambiente das tribos antenadas, festejando os novos tempos.       

Em todos esses atos de engajamento publicitário, os astros e estrelas recitam misérias como se fossem versos de Dante ou João Cabral. Quanto mais solene, mais patético. É revolucionário, você pensa. Estranha revolução, que muda tudo para manter o que sempre esteve aí: o poder, com os poderosos; a grana, com os ricaços. O novo, a diversidade e o respeito aparentes. A velhacaria na essência. 

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